O século dos computadores merece uma música própria

Miguel Carvalhais*







x #03
Nov.05




Som transportado

Num contexto musical tradicional, o som gravado é normalmente diferenciável dos sons gerados ou tocados em instrumentos ao vivo. A acção física, visível com a maioria dos instrumentos, não está presente no som gravado que nos é apresentado como som acusmático.[1] O som gravado normalmente também aporta elementos sonoros que não são produzíveis por instrumentos tradicionais, acústicos, cujo timbre somos normalmente educamos a identificar.

O som gravado não resulta directamente da acção humana sobre um instrumento musical, mas sim da acção de um mecanismo reprodutor sobre um registo feito num determinado suporte por outros mecanismos. Nenhum dos dois sistemas, gravador e reprodutor, é normalmente visível ou pelo menos visualmente muito significativo, na medida em que os sons por si produzidos não resultam de pares mecânicos de acção/reacção, lógicos e causais, síncronos com o momento da produção e audição do som, como acontece em geral com os instrumentos tradicionais.[2] Se a estrutura mecânica de alguns dispositivos de reprodução permite apreender alguns aspectos do seu funcionamento, pouco ou nada nos dá a entender sobre o som que está de facto codificado em cada suporte, permitindo, na melhor das hipóteses, aferir com maior ou menor facilidade qual a duração ou capacidade do suporte gravado ou se o dispositivo se encontra ou não em funcionamento.[3] Finalmente, se o som gravado é reproduzido para um determinado espaço, não deixa de ser inevitavelmente afectado pelas características acústicas deste. O ideal de alta-fidelidade da música gravada foi sempre a anulação de qualquer interferência da acústica local na reprodução do registo, portanto, ao (pelo menos idealmente) anular a acústica do contexto onde é reproduzido, o som gravado introduz neste as características acústicas dos espaços onde é captado, transportando novos espaços para o local da reprodução.

A gravação permite-nos capturar eventos sonoros e operar nestes uma deslocação espacial e temporal, movendo sons para fora dos espaços em que são produzidos e trazendo para contextos que até então eram puramente performativos uma série de sons que não são, necessariamente, tocados. Até ao surgimento da rádio, o som musical apenas podia ser ouvido quando tocado in loco, e mesmo nos primeiros anos após a sua introdução, o som continuava a ser maioritariamente produzido e difundido em tempo real, sendo operada pela rádio uma deslocação espacial do som mas ainda não uma deslocação temporal.[4] Esta só se viria a tornar possível quando foram produzidos os primeiros dispositivos de gravação sonora e até esse momento, o som e a música estiveram sempre indissociavelmente ligados a um acto performativo e a um espaço, privado ou público, em que eram produzidos e ouvidos. Quando a música era tocada em casa, quando era ouvida em salas de concerto, teatros, cinemas ou outros locais públicos, quando era escutada via rádio, nunca dispensava os músicos, os intérpretes e os instrumentos.[5]

A gravação veio libertar a música dessa performance, a única forma de a tornar audível e libertou-a também da partitura, o único registo possível da composição até então.[6] Ao permitir a captura do som musical produzido da descodificação da partitura por um ou vários músicos, a gravação permitiu a posterior dispensa destes e a conservação do seu som. Não só permitiu o transporte da voz de Enrico Caruso para ambas as margens do Atlântico, como permitiu também a sua escuta a qualquer momento e a continuou a permitir muitos anos depois da sua morte. Não só libertou a música do espaço físico como de certa forma a libertou também de algumas limitações temporais.


O século dos aeroplanos merece uma música própria.[7]

Alguns dos primeiros inventores de instrumentos electrónicos sonhavam com a popularização dos seus produtos e com a possibilidade de fazer chegar às massas o som produzido pelos Theremin, Trautonium, Elektrophon, Sphaerophon, Kaleidophon e outros novos instrumentos. Alguns destes instrumentos tinham que ser executados de forma mais ou menos semelhante aos instrumentos acústicos disponíveis à data (e também produziram, caso a caso, os seus virtuosos), outros ofereciam processos mais ou menos complexos de notação e automatização da performance, mas nenhum deles se tornou ubíquo na medida das ambições dos seus criadores, o que não significa contudo que o seu som não se tenha eventualmente tornado muito mais difundido do que os instrumentos foram, e em alguns casos até icónico.[8]

Não foi no entanto a distribuição massiva de nenhum destes instrumentos que tornou os seus novos sons acessíveis a uma audiência alargada, mas sim a acção concertada da rádio e das tecnologias de gravação, que recorrendo a outros meios igualmente eléctricos e electrónicos aproximaram milhões de pessoas aos novos sons e à música em geral (não só a nova música mas também à música antiga). Claro que a rádio era limitada pela sincronia, forçando todos os ouvintes a uma experiência comum em cada uma das frequências disponíveis e obrigando a que a escolha da música a escutar fosse condicionada pela oferta momentânea. A gravação, essa, estava limitada pela imutabilidade dos sons registados em cada suporte. Em todo o caso, foram estes mediadores musicais e não os novos instrumentos que se tornaram comuns e entraram progressivamente em todas as casas, mudando a experiência e a cultura musicais e contribuindo até para que os instrumentos musicais tradicionais e a sua prática fossem em muitos casos afastados das rotinas domésticas. É claro que podemos também pensar quer na rádio quer nos reprodutores de música gravada como instrumentos, uma vez que qualquer fonte sonora pode ser utilizada como instrumento, mas a utilização que normalmente se faz de ambos é uma utilização passiva, de mediação do som, e não de criação sonora.

A rádio e a gravação não veiculavam referências abstractas a sons, tal como faziam as partituras. Ambos os meios traduziam ondas sonoras em impulsos eléctricos, permitindo uma reconstrução diferida do som. Para tal contribuíram também para o aperfeiçoamento e o uso do microfone, que permitia o registo do som dos instrumentos musicais e da voz humana. O papel destes na composição musical vai evoluir justamente graças às possibilidades expressivas permitidas pela microfonia e pela amplificação.[9] É a partir destes dois recursos que vai evoluir aquele que é o instrumento musical por excelência do século XX: o estúdio de gravação.

 

O estúdio

Não é de todo surpreendente que uma máquina composta como o estúdio de gravação, onde os registos musicais eram gravados, misturados, masterizados e muitas das vezes compostos, se tenha tornado progressivamente em muito mais do que um recurso técnico, sendo usado cada vez mais como um verdadeiro instrumento. Progressivamente electrizados ao longo do século XX, os instrumentos enquanto entidades autónomas de produção sonora tornaram-se cada vez mais complexos e foram adquirindo mais e mais componentes, que eventualmente expandiam o seu reportório sónico ou auxiliavam o intérprete na execução ou ambos, multiplicando o objecto inicial numa parafernália de recursos utilizados pelo músico. A guitarra, por exemplo, com raízes numa família de instrumentos portáteis e geralmente bastante acessíveis, que não por acaso estão presentes em muita da música popular europeia, foi um dos primeiros e dos mais famosos instrumentos a electrizar-se. Se a microfonia e a amplificação permitiram originalmente que a guitarra conseguisse ser audível quando tocada com um ensemble acústico ou parcialmente amplificado, permitiram também que o instrumento entrasse numa cadeia de produção eléctrica e finalmente electrónica. Não foram só os dispositivos de processamento sonoro que se começaram a acumular entre a guitarra e o amplificador mas foi também o próprio som gravado da guitarra, que uma vez fixado, pôde ser trabalhado e reprocessado ad infinitum, pôde ser repetido, invertido, editado.

Praticamente todos os instrumentos da música erudita ou popular foram mais cedo ou mais tarde processados em estúdio utilizando ferramentas e processos impossíveis de replicar em tempo-real e em performance. A fixação da música em gravações beneficiou dos processos de gravação em estúdio, não apenas por causa da acrescida qualidade técnica do registo, mas também porque um processo altamente controlável permitiu in extremis que as versões definitivas da interpretação de uma peça pudessem ser compostas a partir de diferentes takes, numa mistura final composta e sintética. Da gravação estratificada de uma peça pré-composta, em que diferentes instrumentos são gravados em diferentes takes e posteriormente misturados, até à utilização do estúdio enquanto ferramenta de composição, porque possibilitador de um trabalho sobre o som de uma ordem que não seria possível ou sequer concebível de outra forma, o estúdio torna-se num elemento indispensável à criação de muita da música do final do século XX.

 

…all sounds of imagination and time.[10]

A gravação permitiu não só o afastamento da performance e a sua eventual simulação ou protetização em estúdio como permitiu também que a música fosse invadida por uma pletora de sons não instrumentais. Até ao advento da gravação, sendo a partitura o único registo possível para a composição, era importante que tal como esta estava normalizada, os próprios instrumentos fossem também normalizados e o mais previsíveis possível, porque de outra forma tornar-se-ia virtualmente impossível, ou pelo menos muito mais difícil, escrever música que pudesse ser transmitida em abstracto a outros músicos. Assim sendo, todos aqueles sons que não podiam ser categorizados com um timbre instrumental ou eram deixados a cargo do maestro ou intérprete de cada peça ou eram, muito mais frequentemente, simplesmente evitados e categorizados como sons não musicais.

A gravação permitiu que a partir do século XX estes sons pudessem ser trazidos para o contexto musical e nele pudessem ser compostos, porque mesmo que não pudessem ser classificados, podiam agora ser reproduzidos e integrados em peças musicais com instrumentos ou integralmente compostas num registo gravado. A gravação arquivava o som original e permitia a sua reprodução diferida com um grau de fidelidade extraordinário. Não foram assim apenas os sons musicais que, uma vez arquivados, multiplicados e distribuídos se tornaram muito mais ubíquos do que alguma vez no passado, mas foram também todos aqueles sons tradicionalmente não musicais que começaram a fazer parte do reportório da composição musical e do quotidiano da escuta.

Quando em 1948 Pierre Schaeffer compõe em estúdio a peça Cinq Études de Bruits, fá-lo usando sons gravados não musicais, que ele apelida de concretos e propõe como opostos à música simbólica e abstracta que identificava como pertencendo ao passado. Em algumas composições anteriores, Schaeffer tinha usado sons registados em vinil para conseguir um efeito semelhante e já em 1939, John Cage tinha incorporado na peça Imaginary Landscape Nº 1 alguns reprodutores de discos vinil que eram utilizados como instrumentos musicais. Os discos de teste da RCA usados por Cage eram compostos por ondas sinusoidais e outras frequências primárias, e por isso se para todos os efeitos se tratava de som gravado, não era um som que pudesse ser classificado como concreto na acepção de Schaeffer. Em 1951, numa outra Imaginary Landscape, a quinta, Cage incorpora rádios, usados como instrumentos, como geradores de som, de ruído, de voz e de aleatoriedade, alimentando a peça de sons concretos e electrónicos, não em estúdio mas sim num regime de performance em que pares de músicos manipulavam conjuntamente o mesmo dispositivo, actuando sob o espectro de emissões electromagnéticas que invadiam cada local em que a composição era apresentada. Temos assim uma música que, em palco ou em gravação, se afasta cada vez mais do passado estático e abstracto, quer pela incorporação de elementos sonoros concretos, quer pelo recurso a elementos de indeterminação ou de interpretação pelos instrumentistas. Não temos uma interpretação no sentido clássico do termo, em que um músico segue os comandos da partitura escrita pelo compositor, mas sim uma interpretação em que o músico tem acesso a um conjunto de instruções menos rigorosas ou mais subjectivas, ou dependentes de factores externos incontroláveis que lhe conferem uma margem de variabilidade a cada execução.

A partir daqui, verificamos também um acréscimo perceptível na complexidade sonora das composições. Desde o momento em que a composição admite a incorporação de fontes gravadas não instrumentais, admitirá também o recurso a fontes gravadas instrumentais e inevitavelmente caminhará para o momento em que se assiste a um desvincular total das fontes sonoras instrumentais ou concretas da suas origens materiais, porque após registados, todos os sons são igualmente sons gravados e todos passam a ser sons igualmente concretos. Quando tudo se torna absolutamente incorpóreo, imaterial, e definitivamente acusmático, é o som também, e não só a estrutura musical que se tornam o objecto da composição. Em estúdio, com gravadores de duas, depois quatro, oito, dezasseis, trinta e duas ou finalmente virtualmente infinitas pistas, com os recursos de transformação e edição do som, e com o vinil ou o CD como suportes de elevada qualidade para o registo final do som, o compositor pôde controlar todos os aspectos da materialização sonora da obra, não a deixando entregue a múltiplas realizações alternativas porque fixada em abstracto numa partitura. Se a complexidade da composição abstracta já tinha sido levada a extremos, desde o Barroco ao Serialismo, era agora hora de se investir directamente na complexidade sónica.

 

Macro-concreto

Ao longo do século XX a qualidade técnica da gravação sonora melhora progressivamente, permitindo uma correspondente melhoria na qualidade documental da gravação. Esta torna possível uma muito maior manipulação e transformação do som gravado, não só durante o acto inicial da gravação mas também no seu processamento e posterior mistura, tornando noções como espaço e reverberação em mais do que características de um registo, em reais ferramentas de trabalho e em recursos da gramática da simulação. A alta-fidelidade permite alcançar uma alta flexibilidade e permite simultaneamente uma percepção mais apurada da gravação como um artefacto, logo, como uma artificialidade.

No outro extremo, quando confrontados com gravações documentais muito apuradas e incrivelmente detalhadas como algum do trabalho de Chris Watson, somos remetidos para um reino supra-sensorial e mediado. Quando somos expostos a sons impossíveis de ouvir em circunstâncias normais e que apenas se tornam audíveis quando são extremamente amplificados ou transpostos para frequências dentro do espectro da audição humana estamos a experimentar uma realidade aumentada pela mediação tecnológica.

A audição dos sons gravados é microscópica. A capacidade que a música gravada nos oferece para repetir a experiência da escuta de uma peça vezes a fio, tendo acesso a uma reprodução (idealmente) inalterável dessa peça, permite-nos escrutinar a sua estrutura compositiva e o seu som a níveis que nunca antes foram possíveis, pela ausência da repetição insistente e inalterada. O acto da escuta já se pressupõe naturalmente atento e apurado, tendente para o que Pauline Oliveros define como deep listening, mas é também pela repetição insistente que somos levados a percepcionar uma mesma peça de formas gradualmente mais apuradas. Cage defendia que os ouvintes podem activamente seleccionar o que ouvem em cada momento de entre tudo o que lhes é dado a ouvir. Daqui infere-se que em qualquer contexto suficientemente complexo e intrincado, o ouvinte possa focar alternadamente elementos estruturais de diferentes níveis, fruindo-os sucessiva e selectivamente, e também que determinados níveis de complexidade sonora talvez só possam ser suficientemente escrutinados quando as peças puderem ser reproduzidas múltiplas vezes e se possam ultrapassar os níveis de leitura macroscópicos mais imediatos que qualquer peça sonora em princípio oferece.

Steve Reich defendia que o processo musical era algo que acontecia de uma forma extremamente gradual, facilitadora de uma audição próxima e detalhada, com uma qualidade meditativa, produzindo sons que poderiam ser percebidos quase que por acaso. A música e o processo na sua génese são uma e a mesma coisa e quando o processo musical é montado, ele desenvolve-se quase autonomamente, sendo muito diferente o processo da composição do da improvisação, uma vez que na composição toda a estrutura musical e todo o som são ditados pelo processo e não pelo livre arbítrio dos músicos.(Cage 1973)[11] Quando é permitido ao ouvinte fazer um zoom sobre qualquer peça musical gravada, permitimos que esta seja dissecada vezes e vezes sem conta, que seja analisada e eventualmente percebida a um nível tão detalhado que poderá algumas vezes não ser acessível sequer ao compositor. A partir do momento em que o compositor trabalha num registo gravado, não pode deixar de ter em conta no seu processo de trabalho esta característica do processo da audição. Se “a repetição é uma forma de mudança[12], a repetição de qualquer peça musical irá necessariamente operar uma transformação da peça, se não uma transformação de facto na matéria sonora, pelo menos uma transformação na sua percepção.

 

Micro-concreto

A composição gravada torna-se então uma nova área de trabalho para o compositor. À exploração de sons concretos segue-se a utilização de sons sintéticos gerados informaticamente, sons por vezes demasiado complexos para serem gerados e executados em tempo real. A mistura de múltiplas pistas de som gravado e a articulação entre estes e os sons sintetizados começaram a permitir composições timbrais extremamente complexas, que eventualmente desfavoreciam os elementos macroscópicos tradicionalmente usados na composição musical e se centravam noutras escalas temporais. Se a um nível superior a composição poderá então parecer estática para um ouvinte menos atento, a sua dinâmica poder-se-á situar a outros níveis, sobretudo aos níveis do objecto sonoro e micro, tal como definidos por Curtis Roads.[13] A leitura e a fruição de uma peça sonora podiam-se então começar a situar a níveis muito menos comuns para o ouvinte[14], focando por exemplo as texturas ou os timbres e a dinâmica destes, da mesma forma que a fruição de uma obra plástica se pode situar também na interacção dos materiais utilizados com o ambiente e com os nossos sentidos, independentemente de uma eventual leitura figurativa que dela possa ser feita.[15]

Quando uma composição varia muito pouco ou nada aos níveis macro ou meso, começa a fazer sentido a sua comparação a uma paisagem, a um contexto que, tal como uma paisagem visual, depois de apresentado muda muito pouco, mas que pode ser perscrutado pelo ouvinte, tal como progressivamente o olhar mergulha numa paisagem vasta. É nos níveis macro e meso que normalmente esperamos encontrar muita da informação que utilizamos para caracterizar a peça musical. Também as paisagens são muitas vezes caracterizadas pela sua macro estrutura, mas depois de uma leitura inicial, muito rapidamente o olhar começa a divagar e a se afastar da macro estrutura, acabando invariavelmente por se fixar a níveis mais reduzidos, onde em geral a acção se concentra e onde alguma variação acontece.

A estes níveis (dos objectos e micro), muito pouco é estático numa paisagem, sendo pelo contrario normal que muito mude e que as mudanças aconteçam muito frequentemente. Dada a escala, é natural que a visão de conjunto seja muito pouco afectada pela maior parte das mudanças. É também expectável que a leitura individual da paisagem feita por diferentes observadores não difira muito a um nível macro mas que se encontrem posteriormente diferenças bastante relevantes ao níveis dos objectos que foram percepcionados e das suas características micro. Enquanto um observador se detém nas copas das árvores e no movimento causado nestas pelo vento, um outro observa os pássaros que voam acima delas, mas um terceiro já olha para além dos pássaros, para as nuvens que se deslocam no céu e se metamorfoseiam. Todos estes elementos compõe a paisagem, e todos eles, por períodos de tempo variáveis mantêm-se aparentemente imutáveis, integrando-se numa composição que é macroscopicamente inalterável.

A gravação, permite-nos simular espaços, sons, contextos e naturalmente, tempo. Ao definir uma paisagem, um espaço simultaneamente dinâmico e estático em diferentes níveis, a gravação permite-nos simular um longo agora, um momento permanente que é repetido uma e outra vez. Se a paisagem real está invariavelmente condenada a mudar porque sofre a acção de elementos que actuam a uma escala superior, como o movimento do sol ou a rotação das estações, a paisagem gravada está por outro lado condenada a recomeçar, a repetir o tempo e os acontecimentos. A perspectiva do observador ou do ouvinte sobre a paisagem pode variar, mas a paisagem, depois de definida e arquivada numa gravação, é, em princípio, inalterável.

Porém, não só as gravações não são inalteráveis, como não são necessariamente eternas[16]. A mutação da gravação pode ser também um instrumento de trabalho e esta foi ocasionalmente alvo da atenção de alguns músicos[17]. Apesar de toda a riqueza que o suporte gravado nos pode oferecer, ele pode também ser um suporte para gravações dinâmicas. Tanto Record Without a Cover como Footsteps, de Christian Marclay procuravam desenvolver um suporte que fosse pelo menos parcialmente imprevisível na reprodução do som nele registado e também único, na medida em que reproduziria não apenas som previamente gravado mas também som gerado por interferências no suporte. Em ambos os casos, o registo original era predeterminado e era uma preparação intencional do suporte da gravação e o envelhecimento ou deterioração deste que permitia que a experiência da audição fosse sendo alterada. Outras peças apontaram para a composição gravada mas com características mais dinâmicas, ou porque propunha a manipulação directa de um suporte, como os Endless Loops de Noto, apresentados em dois discos de vinil com espiras fechadas e eixos de revolução alternativos e descentrados, quase que invocando directamente os discos de teste usados por Cage. O duplo sete polegadas dos Pan Sonic, Arctic Rangers, ao fornecer dois discos que deveriam ser tocados simultaneamente, sem especificar mais instruções programáticas, permite que o suporte gravado seja usado como ferramenta musical, como instrumento directamente manipulável pelo ouvinte. Num ou noutro caso existe uma proposta à interacção do ouvinte, o que afasta decididamente estes dois exemplos da música gravada e da audição passiva que ela à partida requer.

Em suportes digitais, várias peças propuseram sistemas apoiados pelas funções de shuffle dos leitores de CD ou MD para compor obras dinâmicas: Explorers_we dos Farmers Manual, Ho de Runzelstirn & Gurgelstøck ou Minidisc dos Gescom, para citar apenas três exemplos, são composições em suportes digitais gravados com um grande número de faixas acessíveis individualmente (60, 69 e 89 respectivamente) e destinados a serem tocados aleatoriamente, recompondo a sequência das faixas de cada vez que são tocados. Estas três composições (entendendo todo o  suporte como uma composição modular composta pelas várias faixas mais ou menos independentes) abrem caminho para uma nova relação com a música gravada, com uma música que já não é obrigatoriamente estática ou inalterável. Apesar de limitados pelo medium, estes três exemplos apontam para estruturas que não são deixadas ao acaso da degradação dos materiais ou à imprevisibilidade da acção (ou eventualmente inércia) do ouvinte, mas que começam a propor sistemas compostos, destinados a ser executados de acordo com algoritmos (sendo o shuffle o único acessível num leitor de CD ou MD para além da normal leitura linear das faixas.)

Tal como Cage preferia, aqui nada é deixado à improvisação. Nada é deixado ao acaso, mas alguns factores são intencionalmente definidos aleatoriamente. Para que os compositores tenham acesso a algoritmos mais complexos, torna-se necessário, mais do que trabalhar com novas ferramentas, optar pela utilização de um novo suporte para a música gravada, introduzir o computador não já enquanto ferramenta de produção sonora, instrumento ou auxiliar de estúdio, mas enquanto medium para compor as peças. Como veremos, isto obrigará a muito mais do que utilizar o computador como jukebox ou reprodutor de composições gravadas, mas podemos começar por aí…

 

O século dos computadores merece uma música própria.

O papel dos computadores na música é demasiado complexo e a sua acção demasiado abrangente para que se possam analisar de uma forma satisfatória neste texto. Se o computador é um agregador de media cada vez mais utilizado como suporte para a reprodução, distribuição e arquivo de música gravada, o papel que está a ter presentemente e aquele que terá a médio e longo prazo na relação dos ouvintes com a música gravada, ou qual será a sua influência no mercado da música são dois aspectos muito importantes mas que saem do âmbito deste texto. Interessa sim pensar aqui no computador como uma ferramenta de composição, como um instrumento para a produção de uma música que evolua da música gravada, e não tanto como um instrumento para a performance ao vivo, como um reprodutor de música gravada ou um veículo comercial para a música, embora ele também cumpra esses papéis (como tantos outros, sendo afinal uma máquina universal).

Iannis Xenakis utilizou o computador em muitas das suas composições como um auxiliar matemático do processo de composição[18], processando algoritmos complexos que computavam a forma final das suas partituras, como em Achorripsis ou ST/10-1, 080262 (Xenakis 1992). Noutras peças, o computador foi usado não só na composição estrutural mas também na composição do som, gerando sons que seriam de outra forma irrealizáveis e que eram fixados em registos gravados para distribuição ou para a performance de difusão sonora, com ou sem instrumentistas. Xenakis recorria a estruturas matemáticas complexas para a criação das suas peças, criando composições que eram, nas suas palavras, formas de composição que não são o objecto em si mesmo, mas uma ideia em si mesma, ou seja, os princípios de uma série de composições (Xenakis 1992). No entanto as composições de Xenakis, que trabalhou até ao final do século XX, foram fixadas apenas em suportes estáticos.

A proposta de Xenakis leva-nos a pensar como é que essa ideia em si mesma poderá funcionar num contexto em que o computador seja não só usado como auxiliar de cálculo na composição mas também possa ser simultaneamente um gerador sonoro (instrumento ou simulação de instrumentos) e o suporte de reprodução das peças.

Partindo de estruturas relativamente simples, o computador pode ser facilmente utilizado como um ordenador de sons gravados. Enquanto que um leitor de CD em shuffle lerá as faixas de um disco recorrendo a um algoritmo de aleatorização que não admite repetições e que selecciona uma nova ordem semi-aleatória[19] para a leitura de todas as faixas, não repetindo nenhuma sem antes ter reproduzido todas as demais[20], um computador pode ser programado para por exemplo admitir repetições múltiplas, hipoteticamente infinitas[21] ou dentro de limites pré-definidos, ou pode reordenar a sequência de reprodução dos conteúdos de acordo com processos mais intrincados. A peça LMLB03vRR, criada para a rand()%radio, gera uma composição dinâmica baseada em elementos pré-gravados estáticos que são sequenciados de acordo com algoritmos de movimento que controlam directamente o movimento de diversas formas no ecrã de um computador. A interacção entre esses objectos bidimensionais[22] é responsável pelo controlo dos diferentes sons, cujos volumes e panorâmicas estéreo são modulados de acordo com a posição espacial no plano e velocidade de movimentação das formas que os produzem. Temos portanto um conjunto limitado de módulos pré-gravados que é reordenado dinamicamente mas não aleatoriamente, de uma forma que poderá ser passível de criar repetições com sentido. Isto é algo que não podemos à partida esperar de uma aleatorização (que nos conduz em princípio a sequências ruidosas, ie, sem estrutura aparente ou perceptível) [23].

Podemos esperar que sistemas dinâmicos não-aleatórios, ou que pelo menos não sejam totalmente aleatórios nos conduzam a estruturas organizacionais antropocentricamente positivas, ao passo que a aleatoriedade total, se nos conduz mais facilmente a resultados permanentemente novos, não conduz necessariamente a resultados esteticamente agradáveis.(Milisevic 1996)

Se todo o som gravado se transforma em som concreto, todo o som gravado é também um som simulado. O som gravado é uma simulação do som que existiu no domínio físico e analógico, e que é posteriormente reproduzido. No domínio do computador e da musical produzida digitalmente, não só todos os sons são simulados como os sons gravados e os sons gerados são pouco diferenciáveis, porque uns e outros muito frequentemente se intersectam. Se a onda sinusoidal eléctrica era um som gerado, que num sintetizador seria posteriormente modelado por amplificadores e filtros, a onda sinusoidal digital é um som simulado, composto por samples discretos, como todos os demais sons digitais. As mesmas 512 samples podem ser alinhadas numa sucessão de valores calculados por uma função de co-seno, simulando uma onda sinusoidal, mas podem também ser referenciadas a partir da digitalização de um som gravado, resultando numa onda simulada muito menos periódica e que pode igualmente ser usada para alimentar todo o engenho (mais uma vez simulado) de um sintetizador programado num computador.

Já no domínio do analógico em alguns casos esta fronteira entre som gerado e gravado era nebulosa. Se o recurso a sons gravados como alternativa a sons gerados se começou a tornar mais comum com alguns dos primeiros sintetizadores digitais, já instrumentos como o Mellotron, no início dos anos 60 do século XX tinham ensaiado o uso de fontes pré-gravadas. O Mellotron usava como fontes sonoras pequenas fitas magnéticas com cerca de 8 segundos de duração que eram reproduzidas por cabeças de leitura accionadas pelos teclados do instrumento. Se a fonte sonora era uma gravação e consequentemente o som produzido pelo instrumento era já também na sua génese um som gravado, os bancos de sons fornecidos com os Mellotron eram muito pouco concretos (instrumentos de cordas, orquestras, flautas, etc.) mas a fronteira ténue já se fazia sentir. Ainda antes da comercialização do Mellotron, em 1955, Hugh LeCaine gravou uma peça intitulada Dripsody no protótipo de um sistema chamado Special Purpose Tape Recorder, controlado também por teclado mas que nunca foi produzido em série. Os sons usados em Dripsody, gotas de água, são claramente mais concretos do que os incluídos nos modelos comerciais posteriores como o Mellotron.

Concluímos então que quando falamos de música digital, é em certa medida indiferente se os sons produzidos pelo sistema são baseados em sons gravados ou integralmente gerados internamente. Tal como todos os sons se tornam concretos quando são absorvidos pela gravação, todos os sons se tornarão simulados quando são digitalizados e é a nossa leitura posterior dessa simulação que nos irá remeter para uma identificação como pertencentes a classes de sons de proveniência analógica, digital ou instrumental.

Voltando à ideia em si mesma de Xenakis, ao princípio de uma série de composições, podemos pensar no computador como um mecanismo que podendo controlar em primeiro lugar a composição e posteriormente o som, nos permitirá não só a reprodução de uma das realizações possíveis de uma ideia, mas que poderá ser a plataforma de criação e produção para, hipoteticamente, toda a série de composições derivadas da ideia em si mesma. Podemos pensar no compositor como programador de um sistema que, quando é posto em marcha, dá origem a resultados mais ou menos mutáveis porque opera sobre variáveis que afectam não só determinados aspectos da estrutura da composição, mas também sobre variáveis que afectam a natureza do som produzido. Estes sistemas afastar-se-ão tanto da música gravada como da música notada, porque se poderão libertar da rigidez formal ou estrutural a que uma ou outra obrigam, podendo contudo tirar proveito de cada uma destas sempre que necessário.

Ao permitir que a composição se torne dinâmica, ou generativa (na medida em que a acção do compositor não versará necessariamente a criação directa de estruturas sonoras mas sim a criação de sistemas que posteriormente serão responsáveis por as organizar) o computador liberta a música da gravação, de certa forma trazendo de volta a ideia da performance, simulando-a e mediando-a para novos espaços. Por outro lado, ao nos afastar da gravação, o computador pode-nos remeter de alguma forma para uma reaproximação à partitura, não como receita ou conjunto de instruções para um instrumentista mas como um meta-programa musical. Se no passado a música era abstracta e simbólica, tornando-se depois muito mais concreta e literal, poderemos assistir de futuro a uma convergência numa música que será simultaneamente abstracta e concreta, simbólica e literal, em que ouviremos criações dinâmicas executadas por um medium que quer em complexidade e quantidade de recursos disponibilizados se distancia muito do leitor de CD.[24]

Se o computador não for encarado como um simulador de outros media mas antes como um medium com características próprias para a veiculação de música composta para si, e não simplesmente de música gravada, mas sim de música que poderemos denominar como generativa, será possível que venhamos a assistir a muitos mais compositores a trabalharem nesta área. É bastante desejável que isto venha a acontecer. É também provável, uma vez que vamos inevitavelmente assistir à evolução do papel dos computadores no quotidiano para mais do que ferramentas de trabalho ou utensílios de lazer na área restrita dos jogos digitais, e seremos levados a o deslocar para o centro mais tradicional do lazer. Quando o media center substituir o gravador de vídeo, o descodificador de televisão, o rádio e o hi-fi na maioria das residências, talvez aí, quando o computador já estiver não só no local mas também no papel adequado, ligado aos periféricos que lhe permitirão veicular a música bastante melhor, poderemos ter o princípio das condições necessárias para que este desenvolvimento se venha a verificar. Uma das limitações que este tipo de composição encontra ainda será justamente a escassez de meios onde possa ser realizado, uma vez distribuído. O computador não é ainda suficientemente ubíquo para que se possa contar com a sua disponibilidade para executar estas peças de uma forma tão simples e acessível como podemos hoje em dia reproduzir uma qualquer música gravada (em CD ou até já em suportes digitais).

Experiências neste domínio ou se defrontam com este problema, sendo limitadas por exigências técnicas difíceis de resolver pelo ouvinte interessado mas não especializado tecnicamente ou, quando optam por procurar uma centralização computacional que permita a solução fácil deste problema, acabam por sofrer de muitas limitações causadas por essa centralização. É este o caso da já referida rand()%radio, que faz streaming de peças sonoras generativas via World Wide Web[25]. Todas as peças são executadas no servidor e difundidas numa stream mp3. Um primeiro problema que aqui podemos identificar é a limitação ao nível da qualidade sonora causada pela compressão digital do som, e a inerente limitação a dois canais sonoros (quando os media center permitirão à partida a opção pelo uso de seis canais – Surround 5.1 – ou oito – Surround 7.1). Claro que tanto um como o outro problema poderão ser ultrapassados futuramente, visto que a tendência será sempre para o aumento da largura de banda disponível e alguns dos novos formatos de codificação de áudio, como o aac não só permitem um aumento significativo da qualidade do áudio como admitem a codificação de múltiplos canais e não apenas do estéreo standard. Um problema que esta solução não ultrapassará contudo é aquele que é desde logo admitido pelo próprio nome do projecto: independentemente da largura de banda disponível e de o serviço dispor de um ou mais servidores que possam eventualmente processar várias peças em simultâneo[26], a audição feita é necessariamente síncrona, tal como na rádio. Isto conduz a que a experiência de cada uma das peças por cada um dos ouvintes em cada momento seja bastante análoga, justamente quando estas peças pretendem possibilitar o contrariar desta normalização.

A peça Lines And And. encomendada pela rand()%radio é um exemplo, uma vez que toda a estrutura sonora desta peça parte da definição de condições iniciais para o sistema que devem ser arbitrariamente diferenciadas para cada execução, desenvolvendo-se posteriormente um sistema de processamento sonoro evolutivo que trabalha exclusivamente sobre essas condições definidas inicialmente e sobre as mutações nelas provocadas. Quando a execução da peça é centralizada, temos então uma difusão do som e não uma performance claramente individualizada em cada sistema. Encontramo-nos numa situação análoga à de escutar uma composição como Explorers_we via rádio. Se por um lado ouvimos a peça e a nossa audição é influenciada pelo shuffle que está a ter lugar no leitor de CD do estúdio radiofónico, por outro lado, o shuffle não é processado localmente, não sendo portanto diferente para mim ou para outro ouvinte que esteja fisicamente distanciado de mim mas que sintonize a mesma emissora. Assim, para mim ou para esse outro putativo ouvinte, a peça é escutada via rádio como uma estrutura linear e fechada. Temos então, em qualquer um dos casos, peças não lineares que são mediadas de uma forma linear, peças variáveis que são transformadas em constantes pelo medium que as veicula e não peças em que realmente se possa desfrutar da não linearidade e da composição dinâmica.

Pré-gravação, o compositor programava uma orquestra, ensemble, ou solista, usando a partitura como linguagem de programação. Com a gravação o compositor pôde-se colocar não apenas no centro da composição estrutural mas também no da realização sonora das peças, fixando-as em registos áudio e já não num programa para execução posterior. Usando o computador como medium musical, o compositor volta a programar, contando já não com as possíveis interpretações e reinterpretações da orquestra, ensemble ou instrumentistas, mas podendo também programar o rubato como mais um dos recursos da composição, não sendo forçado à fixação estática da gravação mas podendo antes trabalhar estruturas dinâmicas, princípios de séries de composições.

 

Composições citadas

Basinski, William (2002). The Disintegration Loops I

–––––––––– (2003). The Disintegration Loops II

–––––––––– (2003). The Disintegration Loops III

–––––––––– (2003). The Disintegration Loops IV

Beach Boys, The (1966). Good Vibrations

–––––––––– (1966). Pet Sounds

Cage, John (1939). Imaginary Landscape Nº 1

–––––––––– (1951). Imaginary Landscape Nº 4

–––––––––– (1971). Sixty-two Mesostics Re Merce Cunningham

Eno, Brian (1993). Neroli

Farmers Manual (1998). Explorers_we

Gescom (1998). Minidisc

Kahn, Jason (2004). Miramar

LeCaine, Hugh (1955). Dripsody

Lia + Carvalhais, Miguel (2003). LMLB03vRR

–––––––––– (2005). Lines And And.

Marclay, Christian (1985). Record Without a Cover

–––––––––– (1989). Footsteps

Mozart, Wolfgang A. (1787). Musikalisches Würfelspiel im C, KV 516f

Noto (2001). ¥ Endless Loop Edition (2)

Pan Sonic (1998). Arctic Rangers

Runzelstrin & Gurgelstøck (1992). Ho

Schaeffer, Pierre (1948). Cinq Études de Bruits

Steinbrüchel, Ralph (2004). Skizzen

Watson, Chris (1998). Outside the Circle of Fire

Xenakis, Iannis (1956-57). Achorripsis

–––––––––– (1962). ST/10-1, 080262

 

Bibliografia

Cage, John (1973). Silence. Hanover, NH, Wesleyan University Press.

Chion, Michel (1994). Audio-Vision. New York, Columbia University Press.

Milisevic, Mladen (1996). Computer Music and the Importance of Fractals, Chaos, and Complexity Theory. Actes de 3emes Journées d'Informatique Musicale. JIM96. Paris, IRCAM.

Prendergast, Mark (2000). The Ambient Century. London, Bloomsbury Publishing.

Roads, Curtis (2001). Microsound. Cambridge, Massachusetts, MIT Press.

Xenakis, Iannis (1992). Formalized Music. New York, Pendragon Press.




Notas

[1] O som acusmático é aquele “som que ouvimos sem que vejamos a sua origem”. Foi definido por Jérôme Peignot e Pierre Schaeffer e aplicado em particular à música gravada por Francis Bayle. (Chion 1994)

[2] Alguns dos instrumentos pré-gravação sonora são praticamente acusmáticos. O órgão e o carrilhão, por exemplo, são dois instrumentos em que o instrumentista está normalmente fora do alcance visual do público, e o próprio mecanismo do instrumento – apesar de por vezes parcialmente visível – não permite ao ouvinte perceber inteiramente a acção mecânica do músico ou do instrumento. Tanto o órgão como o carrilhão, sendo anteriores à era do som gravado, não colocavam em dúvida se o instrumento estava ou não a ser tocado. Da mesma forma, a orquestra na ópera, situada num fosso fora do alcance visual de uma grande parte do público, é também acusmática, invisível, mas também ela presente. Visualmente, tenta-se a anulação da orquestra, a sua dissimulação, para que o epicentro visual da ópera se situe no palco, não sendo perturbado pela percepção visual da orquestra. A sua presença física era, claro, inquestionável, face à ausência de tecnologias que permitissem o registo e reprodução do som.

[3] Quando o player piano, ou Pianola foi introduzido, apresentou-se de uma forma quase fantasmagórica, mantendo a estrutura física do piano mas removendo explicitamente o músico do funcionamento do dispositivo e recriando a sua acção, ao ponto de manter o movimento das teclas, accionadas quase que por magia. Não me é de todo claro se esta pianola era ou não acusmática, uma vez que o som era gerado por processos mecânicos perceptíveis e presentes. O músico estava ausente, mas a fonte sonora continuava presente.

[4] É claro que mesmo nas emissões em directo existe uma deslocação temporal inevitável causada pelas eventuais latências do equipamento utilizado e pela velocidade de propagação da emissão, que está longe de ser instantânea. Para o efeito, esta deslocação é, na maior parte dos casos, imperceptível para o ouvinte e como tal, irrelevante, continuando-se a perceber a emissão como um directo, em tempo-real ou live.

[5] A rádio, enquanto mass-media, introduziu um dispositivo de mediação e deslocação da música, mas pelo menos numa fase inicial manteve o vínculo temporal à origem dos sons, uma relação natural, dado ter sido precedida historicamente por um outro aparato para a transmissão remota de sons, o telefone.

[6] O registo em rolos de papel perfurado utilizado pela Pianola surge sensivelmente na mesma altura, em finais do século XIX. Os rolos não deixam de ser partituras também, listas abstractas de comandos de acção, não para um intérprete mas sim para o mecanismo do piano. Curiosamente, e ao contrário das partituras destinadas a ser executadas por instrumentistas e que registam uma composição, a partitura da Pianola regista também uma execução da composição por um pianista, registada em directo.

[7] Claude Debussy (Prendergast 2000) Itálico meu.

[8] O som do Theremin utilizado pelos Beach Boys na gravação do tema Good Vibrations tornou-se facilmente reconhecível para muitas pessoas que nunca viram o instrumento que o produziu. É claro que em 1966, quando o tema foi lançado, a escuta de sons concretos e abstractos em música gravada já se tinha tornado bastante comum. Os mesmos Beach Boys tinham já incluído muitos sons realmente concretos numa edição anterior, o álbum Pet Sounds, gravado entre 1965 e 66.

[9] Muito rapidamente, muita da técnica vocal utilizada na música não amplificada fica limitada ao canto lírico e novas gerações de crooners desenvolvem uma música que não seria possível sem o recurso ao microfone, que permite que Sinatra, por exemplo, nos sussurre ao ouvido enquanto uma orquestra o (literalmente) acompanha.

[10] John Cage (Prendergast 2000).

[11] Cage era bastante avesso à improvisação, mas não à interpretação ou à aleatoriedade, como se pode constatar por exemplo na citada Imaginary Landscape Nº 5, mas também nas Sixty-two Mesostics Re Merce Cunningham cujas partituras se destinavam a ser interpretadas vocalmente.

[12] Brian Eno dixit.

[13] Infinito: O intervalo temporal ideal das durações matemáticas como as ondas sinusoidais infinitas da análise de Fourier; Supra: Uma escala temporal para além daquela da composição individual, que se estende por meses, anos, décadas, séculos; Macro: A escala temporal da arquitectura ou forma musical, medida em minutos ou horas, ou em casos extremos, dias; Meso: Divisões formais, agrupamentos de objectos sonoros em estruturas hierarquizadas de dimensão variável, medida em minutos ou segundos; Objecto sonoro: A unidade básica da estrutura musical, generalizando o conceito de nota para incluir eventos sonoros complexos e mutantes numa escala temporal que varia de uma fracção de segundo até alguns segundos; Micro: partículas sonoras numa escala temporal que se estende até ao limite da percepção sonora humana, medido em milissegundos ou em microssegundos; Sample: O nível atómico dos sistemas sonoros digitais, samples binárias individuais ou valores de amplitude, que se seguem numa cadência fixa, medido em microssegundos; Subsample: Flutuações numa escala temporal demasiado pequena para ser correctamente registada ou percebida, medida em nanossegundos ou menos; Infinitesimal: O intervalo temporal ideal das durações matemáticas como as infinitamente breves funções delta. (Roads 2001)

[14] Refiro-me aqui ao ouvinte ocidental, uma vez que noutras culturas musicais a atenção dada à microtonalidade é tradicionalmente muito superior à da tradição musical ocidental.

[15] Um exemplo possível será Neroli de Brian Eno, mas podemos encontrar abordagens semelhantes mais recentes (e no contexto da música digital) em trabalhos de Jason Kahn ou Steinbrüchel, por exemplo.

[16] Poderia aqui especular que nenhuma gravação é de facto eterna, sobretudo quando são usados suportes analógicos. A fixação de gravações em formatos digitais – de certo modo independentes dos suportes mais ou menos temporários em que são arquivadas, e reproduzíveis sucessivamente sem perda de qualidade – aponta pelo menos para  uma eternização ideal, se bem que não factual, provavelmente. A nossa relação temporal com os suportes, de qualquer forma, tende a pressupor uma eternização, ou pelo menos uma escala temporal muito alargada…

[17] Os Disintegration Loops de William Basinski são um dos exemplos possíveis. Estas peças foram criadas a partir de loops em fita magnética que depois de arquivados durante cerca de vinte anos se desintegraram literalmente enquanto Basisnki os gravava digitalmente motivado pela vontade de os preservar. Porque se deterioraram durante a gravação, estes loops tornaram-se sistemas de composição, instrumentos que executaram uma única vez as peças que ficaram então registadas em suportes estáveis.

[18] O processo de Cage, que recorria à aleatorização baseada no I-Ching para a composição de algumas das suas peças, é também um processo computacional, tal como era o processo análogo utilizado por Mozart na sua Musikalisches Würfelspiel im C, que propõe a composição da forma final do minueto a executar, jogando dados e comparando os valores sorteados com uma tabela de correspondências musicais para cada um dos compassos da composição.

[19] A aleatoriedade total não existe num contexto informático. Se podemos pensar em algoritmos que a simulam de uma forma mais ou menos complexa, repetindo um processo de random utilizando a mesma seed para o algoritmo conduzirá invariavelmente a uma repetição dos resultados.

[20] URN: Unique Random Number. Numa série de resultados possíveis, nenhum é repetido antes de esgotar todas as possibilidades.

[21] Algo muito pouco provável, mas apesar de tudo possível.

[22] Ou tridimensionais, se considerarmos que são objectos planos mas com uma existência temporal…

[23] Embora não o possamos também excluir totalmente. Se uma aleatorização livre nos conduz teoricamente a todos os resultados possíveis de recombinações de um determinado universo de elementos (admitindo ou não repetições), apesar de a sua probabilidade ser infinitesimalmente baixa, podemos admitir a hipótese intelectual de que uma aleatorização nos venha a produzir resultados com estruturas com sentido, tal como os macacos em máquinas de escrever poderão eventualmente reproduzir Shakespeare.

[24] E que um dia – se não já – será bem mais comum do que os leitores de CD ou outros reprodutores de som gravado.

[25] No endereço http://www.r4nd.org

[26] Presentemente a rand()%radio funciona com um horário de programação em muito semelhante aos horários de rádios e televisões, programando as diferentes peças numa grelha rotativa, porque apenas dispõe de uma stream única.





Miguel Carvalhais (Porto, 1974) lecciona na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Trabalha transversalmente em design de comunicação, música e artes visuais.

Como músico, integra o projecto @c (com Pedro Tudela e Lia) e colaborou nos projectos [des]integração e zzzzzzzzzzzzzzzzzp!. Tem peças publicadas pelas editoras Crónica (pt), Sirr (pt), Fuga Discos (ar), Variz (pt), Ananana (pt), Lanolin (at), Ristretto (pt), Grain of Sound (pt), Falsch (at), Index (at) e Lovebytes (uk).

Desenvolveu diversos projectos com a artista austríaca Lia, entre os quais a instalação audiovisual 30x1 (também com Pedro Tudela) e encomendas para o Ars Electronica Center (at), Festival Lovebytes (uk), Fabrica (it), MediaLounge (uk), Rand()%Radio (uk), This Is A Magazine (it) e Museu do Chiado (pt). Desenvolvem actualmente a instalação DataFall para The Public (uk). Comissariaram exposições no Australian Centre For The Moving Image (au), Festival Sónar (es) e Künstlerhaus (at). Como editor da Crónica, que co-fundou em 2003, produziu até à data mais de 20 edições áudio e audiovisuais.

 

http://www.carvalhais.org

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