Imprevisibilidade
Velocidade
Ócio

46
por Ivo Martins
 
 

Não sei se os números 4 e 6 identificam a temperatura do meu corpo segundo um critério de medição que não conheço, ou se se trata apenas de mais um processo de comunicação entre a elevada quantidade de símbolos que primeiro invadiram o comércio e agora acompanham todos os objectos e equipamentos que actualmente são consumidos. Esta complexa sinalética expressa-se através de muitas fórmulas numéricas, nominais e codificações com destaque para o famoso (e imprescindível) código de barras. Manifestam-se como verdadeiras metáforas do imaginário quotidiano ao funcionarem na forma de avisos e indicações, tantas vezes premonitórias do inexorável avanço deste admirável mundo novo do progresso "para todos" os gostos.

Há muito tempo, comecei a sentir os efeitos somáticos ainda mal esboçados devido à grande quantidade de numeração acumulada durante todos estes anos. O desejo de destruição largamente excedentário em relação ao seu verdadeiro dimensionamento que entretanto se havia espalhado em vários sistemas e estruturas nos quais fui introduzido, era de certa maneira anulado pelas mais diversas ordens de razões burocráticas, conveniências sociais e justificações políticas. O mesmo já havia acontecido em relação ao registo da minha classificação nominal, aquela que me foi atribuída (é irrelevante saber quem foram os seus autores e porque o fizeram), praticamente desde o dia do meu nascimento. Estes factos foram-me oficiosamente apresentados como um dever de ser parte integrante da organização a que pertenço, um mecanismo tutelar de cidadania indispensável para que possa existir e depois ser sujeito activo ou actuante no chamado território nacional. Ainda não sei, nem imagino, se algum dia poderei vir a conhecer até onde pode chegar esta, cada vez mais apurada, rede de informações pessoais, nem quais são as suas possibilidades de se relacionarem entre as diversas classificações, numerações e códigos já existentes sobre a minha pessoa, bem como a origem dos indivíduos que um dia decidem mandar executar essas manobras com um evidente carácter persecutório.

Mas, para conseguir aliviar esta estranha sensação que me impede de desenvolver um pensamento mais rico a favor das forças positivas, comecei a imaginar que aqueles estranhos e complicados conjuntos de números, e as suas complexas codificações, não seriam mais do que o equivalente ao nome de um "Vírus". Esse "bicho" microscópico (desculpem o primitivismo desta linguagem), que como todos os seres que a nossa visão não alcança, adquire de imediato uma aura misteriosa que se revela na falta de um sentimento de pertença a alguém ("belonging somewhere"). Percebo perfeitamente o tipo de entendimento do mundo, que se vai edificando através de sucessivas transferências geracionais e que o passado deixou intactas como aquilo que é inapreensível – o fantasmático. Ele surge-me, agora, associado a um admirável mecanismo de renovação permanente e podemos detectá-lo nos mais elaborados sentimentos de medo, nos múltiplos receios, nas dúvidas pesadamente juntas, nas hesitações rápidas e passageiras, nas confusões do que aparentemente se parece semelhante, nos sinais ameaçadores que já não servem para coisa nenhuma, porque deixaram há muito de provocar a mais pequena tensão e influência nas atitudes de alerta e vigilância . Aparecem, vindos sabe-se lá de onde, prontos para agirem malévolos e destrutivos sobre o vazio de cada organismo, que vai ficando sucessivamente indefeso perante a constante alteração das qualidades dos seus ataques. Na "inteligência" das mutações e na alteridade das figuras que apresentam, vão gozando descaradamente com os avanços de uma ciência que, por vezes, nada mais lhe resta do que assumir os seus erros e, a seguir, afirmar-se comicamente segura, necessária e suficiente. Neste caso, qualquer combinação entre números, letras e demais símbolos poderia ser apenas um simples pedaço de anti-matéria. A sua descoberta vai fazer com que a seguir fiquem centradas todas as atenções na sua incontrolável exploração como um fenómeno que tem sido tão mediaticamente esperado. Percebemos que começam a estar muito em voga nas inúmeras investigações científicas levadas a efeito actualmente, um pouco por toda a parte, formas de actuação que as finalidades e estratégias da moda e da ciência da guerra explicam perfeitamente. Depois do fracasso de encontrar, com rapidez, a confirmação sobre a existência de vida extra-terrestre, na sua manifestação mais popular, era crucial arranjar umas tantas justificações para ocupar e anular (não sei se é possível) a energia há muito acumulada de um colectivo em estado de profunda ansiedade e ganhar, assim, mais algum tempo uma vez que as situações verdadeiramente extraordinárias continuam por acontecer, embora tenhamos de admitir que são espectacularmente visíveis os avanços performáticos e circenses das idas e voltas ao espaço. A manipulação da imagem neste ambiente de hiperealidade manifesta, de uma forma subtil, a total incapacidade de ir além de umas tantas voltinhas ao nosso planeta, com a já inevitável transmissão em directo, "à cidade e ao mundo", na qual se realizam vários tipos de piruetas e habilidades interessantes - tira e põe satélite, conserta cabo, aperta parafuso, substitui peça, experimenta sem a força da gravidade... Este momento de evidente incerteza, que cada vez é mais visível, tem atraído para outros lugares do planeta inúmeros exploradores representantes competentes do inestimável sentido predador da nossa raça, os também conhecidos caçadores de tesouros, que se divertem agora a passar a pente fino todos os fundos marinhos, apoiados numa das mais apuradas tecnologias que só a insolvência de um império em completa desagregação vende aos melhores preços de ocasião. O império profanado, ou a sua profanação, tornam-no assim no principal colaboracionista e cúmplice noutra das muitas miseráveis campanhas de delapidação, organizadas sob os auspícios de vários países que se autodenominam civilizados e defensores dos oceanos, das florestas e afins. Neles continua a subsistir, ainda com clareza, uma obsessiva e paranóica ideia de civilização superior e salvadora, a qual como noutras tantas ocasiões, se limita a verificar e a certificar o óbito de toda esta enorme pouca vergonha, entre discursos eivados de moralidade e outras tantas mezinhas alucinatórias, corruptas e iludíveis. Como autores morais desta catástrofe (mais uma), o que é que pensam os seus representantes ?democraticamente eleitos»? Será o negativo indeterminado; será a quantificação aleatória; ou será a necessidade de destruir, como parte intrínseca do processo de construção, um projecto de vida? Qualquer que seja a escolha, é sempre mais uma resposta entre as muitas que diariamente contaminam, banalizam e saturam completamente a linguagem.

Todos os seres que a natureza durante milhões de anos preparou - numa providência da qual desconhecemos o seu mestre - sempre em confronto com a possibilidade da sua aniquilação eminente, nada mais me ajudou a aprender senão a constatação da existência deste jogo cheio de fatalidade e com muito destino à mistura.

Mas passemos aos factos. Um certo dia, encontrei no trabalho "The Book of Heads", de John Zorn, os motivos essenciais para perceber que o espaço e o tempo já não são os únicos produtos que compõem uma pesada matéria alquímica, que fez disparar sobre a escrita musical toda uma enorme dispersão de novos elementos. O ritmo aparece como se fosse o limite mínimo para, a partir daqui, se alcançar o seu derradeiro culminar. Um só "beat", isto é, uma só batida "forever". Realiza-se então uma espécie de aproximação à sua unicidade última - o grau zero de um batimento e o seu pulsar único e universal. Estas primeiras abordagens acerca da problemática das limitações rítmicas no contexto do jazz, como música improvisada, está registada na obra, escrita em 1978, "The Book of Heads", uma experimentação sobre as múltiplas possibilidades estéticas da planura musical, em regime apressado, no conjunto dos 35 curtíssimos estudos compostos para uma guitarra (neste caso a de Marc Ribot), cuja durabilidade rejeita liminarmente qualquer tentativa de referendo existencial, sobre o que devemos considerar como altitude, superfície e profundidade. A modificação do significado daquelas coordenadas ajudaram à abolição do minuto como unidade mínima de tempo, deixando ao espaço todas esperanças de aí se cultivar um novo conceito de liberdade que, partindo de outros valores, vai passar a redimensionar-se na velocidade do segundo e nas suas divisões mais ínfimas.

Tenho de voltar a mexer em velhas histórias picarescas e ridículas para conseguir explicar alguma coisa sobre o enorme fenómeno de dispersão que esta música expressa. Existe uma atmosfera paralelamente obsessiva de profanação sonora a incitar os mais imaginosos procedimentos de abordagem sobre o corpo e no corpo (da guitarra) que possuem inúmeras semelhanças com a técnica de incisão cirúrgica. O bisturi brilha ao fazer o seu primeiro corte na pele de alguém que se entregou aos desígnios de uma arte suprema, corre na direcção do som sobre um instrumento que se descobre totalmente defeituoso e que urge ser amputado em várias partes, para executar as necessárias correcções reconstitui-lo ao mais ínfimo pormenor . Não sei se foi a música que operou a sua destruição/construção - causando todo aquele enorme e monstruoso aparato - ou se foi o contrário. Concluída esta urgente intervenção, os delitos e delírios sonoros parecem surgir de dentro de uma guitarra virada do avesso, cujo o interior se encontra agora totalmente exposto e bem visível. A pestana, a escala, o tampo, as ilhargas, o braço, o cravelhame e as costas, são perfeitamente observados pelo seu lado interior com uma série de barras coladas às costas e ao tampo, em número e disposição variáveis conforme o construtor. "The Book of Heads" trata-se de uma das primeiras obras de Zorn que já deixava antever o seu percurso vertiginoso por entre subculturas, marginalidades, géneros, espaços de ninguém e outros experimentalismos que sempre soube cultivar até às últimas. Tenho, como devem compreender, imensas dificuldades em dar explicações eficazes sobre estes percursos, onde a etiqueta e as boas maneiras nunca foram a minha, nem a sua especialidade.

"Zapping" orgânico e visceral, por vezes altamente contaminado com associações de origem saudavelmente duvidosas, é o resultado de uma clara falta de tempo a perder em oportunidades que sobrevivem num espaço sobrepovoado de individualidades sonoras, visuais e agora, virtuais, onde o caminhar atrasado fora de qualquer número de ordem pode ser uma tarefa extremamente dolorosa e, nalguns casos, fatal. Como sucede em todas as fugas, no meio da debandada, muitos vão ficando pelo caminho porque se lhes escasseiam as forças suficientemente capazes de aguentá-los numa marcha irritante que lentamente avança. Mas para a quem custa andar, aquela tarefa, de apenas seguir caminhando devagar, deve parecer um acto totalmente possesso de um desejo, maníaco e ansioso de excesso de velocidade. O privativo (reclamação insistente do particular, caixa que contem os restos do seu último banquete, "Pantagruel" musical em trajes reduzidos a fazer assédio ao telefone) tem uma enorme representatividade nas suas elaborações por vezes de forte incidência psico-social, política (lembro a obra "Kristalnacht"), sex-sado-masoquista, "pornógrafa", kitsch, cinéfila e, finalmente, religiosa quando nestes últimos anos resolve empreender um retorno na descoberta das suas raízes e, a partir, daí iniciar mais uma manobra incendiária plena de espírito militante no contexto das suas origens (duvidosas para alguns) judias. É debaixo da inspiração de uma cultura hebraica que se têm vindo ultimamente a desenvolver as suas movimentações mais recentes ...até ver.

O Jazz surge como uma forma de cimento/cola aglutinador que vai actuando com maior ou menor intensidade nos interstícios de um tecido musical, desenvolvido através da extensa manipulação de sedimentos sonoros com origem desconhecida e que partem para destino incerto. O conglomerado construído a partir da prensagem de uma brutalidade de excedentes, aparas, (subprodutos de uma extensa linha de produção em massa, que a máquina sempre ingrata e, nalguns casos vaidosa) vai fazer acelerar o engenho pulverizador de todos os limites do espaço e do tempo. Quando se impede de viver o espaço e o tempo, ficam a descoberto as desorganizações estruturais e as desarmonias evolutivas que remetem para o vazio de uma entidade, onde, no seu interior, já deixou de ser possível distinguir a diferença entre acto e acção. O que sobra é uma consequência da responsabilidade do acaso. A anti-matéria aparece-me encarnada pelo vírus. Tenho de reconhecer o sentimento eminentemente narcísico destas observações. Mas existe um impressionante relacionamento entre os vários instrumentos de cálculo sensorial que me permitem pensar com verdadeira exactidão e ajudam a saber fazer perante o passar do ...

Cada um terá o seu momento ao contrário, uma espécie de revelação subtraída de si.

... apesar de por vezes ter a noção que estou virado do avesso. A minha pele dobra-se para dentro e o resto pende no exterior sem a menor sensação dolorosa. Nem quero imaginar a aparência desta figura esquartejada e devolvida de novo à luz nas suas partes coloridas e interiores. Olhar-me olho(s) no(s) olho(s), ouvir-me no meu ouvido...

 

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