A ESTÉTICA NA ERA DA SUA REMATERIALIZAÇÃO:
apontamentos sobre o relacionamento arte / técnica
por Carlos Vidal
 



    Contemporary art has turned from the world view of my generation of artists and critics, in wich (to put it crudely) everything seemed to be an image, an effect of representation. The Baudrillardian notion of the simulacrum permeated much work of this time. But the next generation, the one active now, has a different idea of the real. «The return of the body» is a cliché, but like some clichés it conveys some truth. The body has reasserted its claim that it cannot be elided in representation, that it will not disappear in cyberspace (...).

    HAL FOSTER (interviewed by Rubén Gallo), The Return of Shok and Trauma (1)




1.
Para Clement Greenberg não há, com efeito, progresso em arte (2). Daí que o crítico norteamericano sempre tenha reafirmado, aliás insistentemente, nada existir no Expressionismo Abstracto, ou na painterly abstraction (termo que sempre preferiu quer a «expressionismo abstracto», como a «action painting»), que rompesse (ontologicamente, digamos) com a arte precedente. Assim, existem tão-somente desenvolvimentos, dobras, o que Greenberg considera de evolução no seio de uma tradição. Por isso, provavelmente desde Giotto que conseguiremos dizer não haver progresso em arte; por outro lado, podemos retomar esta tese greenberguiana de outro ponto qualquer anterior da história, se quisermos. A verdade é que há -- perante os mesmos olhos, os nossos olhos que antevêem uma espécie de cibermundo --, uma arte crescentemente rematerializadora; rematerialização que, de geração para geração, e pelo menos desde os anos 60, tem vinculado e desvinculado artistas e matérias.
Matérias pretensamente desmaterializadas, desmuseologizadas, mas simultaneamente redescobridoras (e redescobridores os artistas seus agentes) do museu como palco de democratização; enfim, vemos acesos os focos de todas as rematerializações numa era de indústrias culturais e de «conteúdos». Há uma rematerialização pronunciada (e uma resistência crítica à industrialização do pensamento), por exemplo, na arte que toma o corpo como referência. Mas já lá iremos -- precisamente ao que chamarei de «retorno ao corpo», em paralelo com o «retorno do real» de Hal Foster, acima citado.


2.
Não pára de alargar-se a distância entre «meio», mediação, mundo e virtualização -- e é este retorno do real e do corpo que grande número de investigadores não pensou: no fundo, o que é a arte (quando é que é arte?, perguntava Nelson Goodman) e a cultura contemporâneas neste período de todas as rematerializações? E o que é isso de rematerialização?
Questionemos adicionadamente: o que é a arte e a estética num período como estes actuais anos 90 onde as «acid house parties», o «reclaim the streets & the Night Marches», a «anti-car culture» e as raves se imbricam numa área absolutamente não-tecnológica (em uma não-tecnologia de onde se não vêem descolagens ou aspirações de conexão a uma hipertecnologia como seria de esperar) como é igualmente a da «Do it Yourself Culture»? De outro modo: porque é que a maior parte das «tribos» ainda não ocupa o ciberespaço e muitas há que não o ocuparão? Mas talvez mais interessante ainda seja encarar as raves (e o ecstasy ou o movimento techno ...) como o imprevisível por excelência, como aquilo que, apesar do dito «aparelhamento técnico» da realidade em forma de «poder absoluto», se mantém fora e dentro dessa instrumentalização, fora e dentro de todo e qualquer espaço. Fora e dentro do número, dentro da perda e do dispêndio orgíaco e no limiar desconhecido do ciberespaço e da mais arcaica fisicalidade. Michel Maffesoli: «Nous vivons une forme de démocratisation de la pensée bataillienne» (3) .
George McKay é um dos mais informados (e praticantes) sociólogos «historiadores» da contracultura subsequente às andanças dos anos 60 no ocidente, como o demonstra no seu livro Senseless acts of beauty -- Cultures of Resistence since the sixties (4). Aqui retomamos o contacto com todos os grupos que têm marcado a gratuidade estética da contracultura contemporânea: anarco-punks, free ravers, nómadas «sem causa», tribos de ravers e squatters, diYers, etc, abeiramo-nos dos respectivos antiprogramas e aspirações, e consideramos este «pós-situacionismo» como o lugar esquecido de alguns teóricos que, para além deste espaço de partilha arcaico e hiper-pós-moderno, se sentem também confusos perante a releitura de Hal Foster, em The Return of the Real, sobre a história artística desde as vanguardas históricas às neovanguardas dos anos 60 e actuais.
Recentemente, McKay publicou uma antologia de textos precisamente dedicada ao ponto de chegada desta história contracultural, D i Y Culture, Party & Protest in Nineties Britain (5) . Considero fundamental, antes do mais, o estabelecimento de um paralelo entre esta D i Y Culture e o tema dos «regressos»: do real e do corpo -- ambos são centrais na arte e na cultura actuais, onde aquilo que se relaciona com as artes de desmaterialização digital e de mediação tecnológica, num pressuposto mesmo de aceleração processual, tende a ser superado por uma apetência renovada e de todo inesperada pelas fisicidades e pelos corpos.
Depois, só depois, se poderá ver como, ao mesmo tempo que se dá este reapossamento do corpo, se vem construindo um arco comunicante em direcção a uma libertária hiper-tecnologia.
É curioso que, na era de todas as mutações, desde os invólucros hiper-reais, orgânicos e ecológicos que o ameaçam progressivamente, à tecnomutação e ao ciberespaço, passando pelo irreparável alargamento conceptual que tudo isso provoca, o corpo passe a ser um ponto obsessivo do debate estético dos anos 90. Do fim do milénio, se se preferir. O corpo instala-se na frente de toda a representacionalidade, tema de reflexão sem disciplina ou metodologia exclusiva, apesar do actual produtivismo que leva ao empobrecimento e esgotamento dos solos, aliado à engenharia genética e aos desastres industriais-ecológicos como os de Three Mile Island e Chernobyl, às novas regras de produção agrícola e alimentar, à industrialização da vida celibatária e à sua consequente «inércia polar» (6), à cibernética, à inteligência artificial e à biotecnologia. Como o corpo não se dá, na exposição estética e na realidade que lhe sobrevém, como instância de «espectáculo», antes sendo permanentemente um lugar de indefinições, eis algumas questões que se inscrevem neste plano de discussão: será que o corpo surge hoje como tema de debate tão emergente porque os regimes de tecnomutação (pertença de uma sofisticação tecnológica genérica e exterior ao corpo) o podem transfigurar em poucos segundos ? Ou, diferentemente, porque a evolução da vida e da sociedade no seio do capitalismo avançado, ela mesma transfigurada em «natureza artificial» (remetendo para a arqueologia de fim-de-semana a «natureza natural»), vem transformando o corpo num conceito que irremediavelmente perde de vista a sua matriz física ?
Apesar da emergência destas interrogações, ou fruto dessa emergência no tempo de todas as ameaças -- sobre o corpo e sobre a arte -- este mesmo corpo que é nosso retorna assim ao núcleo das preocupações dos artistas (também porque desse núcleo nunca saiu), porque a corporalidade situa-se além da sua inerente materialidade (e de novo nos encontramos a especular no seio da imaterialidade) e da imaterialidade dos seus limiares e da alma. Deste modo se poderá dizer que o corpo sempre foi o fulcro da representação estética e o barómetro mais fiável, não apenas em termos históricos, da mutabilidade de suas manifestações. Por exemplo, o corpo instaura, na Forma ou nos «modos de formar», um factor informe (Bataille) que é uma das modalidades mais eficazes de perceber o mecanismo de desenvolvimento da representação. Trata-se de poder verificar, na Forma e em qualquer Forma, uma autocorrosão (outra maneira de obter este resultado seria excedermo-nos num formalismo tal que a forma enregelaria de silêncio e em não-presença), de dentro para dentro, da mesma maneira que a morte actua desde dentro de um corpo (vivo) e o integra (7) .
Mas para além de proporcionar um novo entendimento da Forma (o de um informe que se não quer resumir num mero «informalismo»), de um palco para a consciência representacional da morte, da carne ou do amor, de um cenário onde se digladiam a adopção-recusa de uma identidade (Kristeva), o corpo é ainda, por isso mesmo, entidade metamórfica, lugar de alma e tempo, palco do sentimento amoroso como condenação relacional, se quisermos seguir uma Simone Weil em seus textos genuinamente dilacerados: «o amor é um indício da nossa miséria. Deus não pode senão amar-se a si mesmo. Nós não podemos senão amar aquilo que é distinto de nós mesmos» (La pesanteur et la grâce (8) ).
Daí que igualmente não nos pareça estranho termos permanentemente, e de múltiplas maneiras, tentado superar as constrições do corpo, algo muito sentido neste fim de milénio, sobretudo no domínio das artes plásticas. Domínio que sente influências de outros territórios, tudo apropriado num espírito de tempo próprio -- de hiper-realidade, tecnomutação, artefactualidade (Derrida), cibermundo, teletecnologia e, finalmente, regresso ao corpo, uma vez mais. A transformação do corpo, por via da nova engenharia genética, num conceito pertença de uma «natureza artificial», exponenciando os desígnios próprios do capitalismo tardio, perde sentido e actualidade perante este perturbante «regresso do real». E porquê perturbante? Porque, enfim, o produtivismo aliado à engenharia genética e aos desastres industriais-ecológicos, como se disse, não tornam o corpo apenas um lugar «espectacular», conduzem-no, acima de tudo, ao indefinido e ao incerto.
Donde, o crítico de arte americano Jeffrey Deitch pôde deixar-nos este prognóstico para a «história do Eu»: a Modernidade foi o período da sua descoberta; a Pós-modernidade foi o da sua desintegração; a Pós-humanidade será o da sua reconstrução simultânea ou posterior ao seu desaparecimento enquanto entidade física (9).


3.
Escreveu Heidegger: «Tão necessariamente quanto o artista é a origem da obra de arte, de uma outra maneira que aquela em que a obra é a origem do artista, assim tão certo é que a arte é, ainda de um outro modo, a origem ao mesmo tempo do artista e da obra. (...) A arte encontra-se na obra de arte. Mas o que é e como é uma obra de arte? O que a arte seja, tem de apreender-se a partir da obra. O que seja a obra, só o podemos experimentar a partir da essência da arte. Qualquer um nota com facilidade que nos movemos em círculo». A «solução» é conhecida e dada pelo filósofo: «temos de percorrer o círculo» (10).
O que Heidegger nos pode dizer é que, diferentemente da ciência, a arte não se devém tecnologizada. Ou seja, não se resume pela técnica, pela pragmática ou pela política. E, ao contrário, a ciência pode viver sob essa ameaça -- a arte tende para dela se libertar, pois, mesmo desenvolvido o espectro de uma cibercultura (enquanto cultura ela mesma de espectros) e realizada uma hipotética cessação das mediações, a arte contará com a possibilidade de descoincidir em face da alta ou baixa tecnologia, como vimos. Heidegger, em «Die Bedrohung der Wissenchaft» (A ameaça que pesa sobre a ciência): «A ameaça decisiva e efectiva que pesa sobre a ciência é quíntupla» : trata-se de uma tecnologização que acarreta uma regulamentação fechada e a consequente normatividade da especialização; uma necessidade de consagração política; uma submissão à indústria; um afastamento da universidade; e uma pragmática sem fôlego (11) .
Passando por outra ideia ideia já estruturada e descrita, na medida do possível, diria que os «meios», para a arte, e num contexto que poderemos denominar de modernidade, não se impuseram tal como a técnica para a ciência (12) . Em suma, dir-se-ia que a arte está permanentemente além e aquém das técnicas por estar sempre além e aquém dos seus próprio meios -- e aí o termo «ciberarte» não faz sentido, mesmo que toda a arte de hoje se produzisse ciberneticamente ou fosse digital e desmaterializada.
Paul Valéry dizia que só se pode ter uma concepção clara daquilo que se inventa. Este enunciado radicaliza-se no território que chamamos das artes; a arte habita no território da sua própria invenção e aí existe com os seus meios, tal como, apelando a outra metáfora, o exilado na sua própria casa, seguindo a penetrante meditação de Edward Said sobre a vivência e a definição de exílio. Com efeito, não pode existir uma absolutização das identidades, nem tão-pouco da terra e da casa -- para Edward Said, o conceito de exílio não se compõe da perda da terra e da casa, ele vem antes dizer-nos que a perda é inerente à própria posse da terra e da casa a que podemos juntar a da identidade (Edward W. Said, «Reflections on Exile» (13) ).
Assim, concluir-se-á que a arte esquiva-se a qualquer relação e / ou relatório mediático, pois se inventa inventando os seus «meios», em relação aos quais se situa além e aquém. Tal como todos nós em matéria de ciberespaço, de cibercultura e cibermundo nos encontramos aquém e além deles como realidades concretas: ou seja, perece-nos que já superámos o cibermundo quando teorizamos e falamos de «retorno do real», de «retorno ao corpo», de low fi culture e DiYculture, etc; ou ao contrário, ainda não o realizámos, como nos demonstra, a partir de William Gibson e da sua «orgia de linguagem» (Fredric Jameson), um ensaista como Julian Stallabrass.
Neste autor, e muito inteligentemente diga-se desde já, esboça-se uma pertinente introdução a todo um espaço de mais extensas contradições, pois se o ciberespaço é, por via hegeliana e platónica, uma concretização virtual de mundos futuros e ideais, também nos traz estruturações sociais e alianças de poderes já conhecidos: «Cyberspace is also allied with an unashamed consumerism (...). V. Sobchack has analysed the mix of New Age spiritualism and New Age technophilia in which sixties political activism and social consciousness have been resolved into "a particular privileged, selfish, consumer-oriented and technologically dependent libertarianism", which fulfils "the dreams of 'mondoids' who, by day, sit at computer consoles working for (and becoming) corporate America". It is cyberspace which will allow this becoming to complete itself, uniting the worlds of work and leisure in an envoronment plied by virtual alter-egos. In this light, cyberspace appears as less the end of history than the ultimate business environment, being stockmarket, warehouse and shopping centre all in one» (14) .
Aparentemente, Stallabrass descreve-nos um quadro pelo menos semitotalitário, onde o desenvolvimento contracultural culmina em renovada apoteose do consumo, e o que poderia ser ainda mais perturbante é a passagem em quebra, portanto, em fusão, da anteriormente sublinhada contradição entre uma contracultura metatecnológica e a digitalização corporativa do mundo. Por outras palavras, tratar-se-ia da «rendição» das até há pouco imprevisíveis formas contraculturais (incontroladas igualmente, porquanto na arte e na vida quotidiana se separaram de uma tecnologização programática da cultura) e de uma arte de «mediações pobres» (correlacionada inevitavelmente com os «retornos») à irresistível performatividade das big corporations.
Em idêntico sinal, é também muito amarga, como se vem sabendo, a visão de Paul Virilio perante a consolidação do cibermundo: «é próprio da velocidade absoluta ser poder absoluto, instantâneo, ou seja, um poder quase divino. Pusemos hoje em prática os três atributos da divindade: a ubiquidade, a instantaneidade e a imediaticidade; a visão total e o poder total. Nada disto se relaciona com a democracia, mas sim com a tirania. Os multimedia colocam-nos perante um problema: existe uma democracia do tempo real?, do live, da imediaticidade e da ubiquidade?» (15).
Antes da ficção, inicialmente literária, do cibermundo e do ciberespaço, a imaterialidade era já uma das marcações de existência da própria arte, desde a «cosa mentale» renascentista à desmaterialização neovanguardista (conceptual e fenomenológica); da espiritualidade de outros séculos (de que derivará o Deus está nos detalhes de Warburg, ainda daí à, escolhendo recentemente ao acaso, deriva psicanalítica de muitos pensadores estruturalistas -- com Kristeva a encimá-los), passando pela conceptualização e neoconceptualização pós-estrutalista e neofeminista, vimos a imaterialidade tornada factor comum de toda a história da arte. Mas podemos acrescentar que o relacionamento imaterialidade -- desmaterialização -- rematerialização, hoje, tem um cariz próprio (inédito?).
Diria que é mesmo dessa contradição que agora se pode alimentar não só a cultura como a democraticidade da própria cultura contemporânea. Precisamente porque a rematerialização ou a hiper-materialização (este, um termo preferencial de Julian Stallabrass) actuais não se dão como fenómenos contraculturais de resistência. Diga-se que na cultura contemporânea a rematerialização da arte não é uma frente ou estratégia de resistência (16) quer à desmaterialização analógica, quer à digital, ou ainda a processos fenomenológicos, conceptuais e neoconceptuais.
Qualquer percurso pelas vanguardas e neovanguardas actuais nos revela que a rematerialização é uma condição central à arte do nosso tempo, e a sua passagem pelos últimos quarenta anos acabará por ser o tema da segunda metade deste texto, que, por isso mesmo, se pretende um comentário para a enfatização de tal contradição como fulcro fundacional de qualquer espaço democrático.
Daí que não possa comentar os novos aparelhos de mediação estética de modo apocalíptico, nem apologético, eufórico ou disfórico. Portanto, mais do que produzir um texto sobre o cibermundo, o ciberespaço e a cibercultura como agentes desta suposta era de concretização total do simulacro baudrillardiano, pretendi uma imersão nas contradições, paradoxos, na fulcral e irrevogável dissociação que habita a arte do tempo. Por isso este é tanto o tempo da realização generalizada da imaterialidade digital como o da existência física da mais farta e acessível (exequível) lista de possibilidades estéticas de rematerialização. Mergulhar-se-á nessa contradição.
Para Julian Stallabrass, em primeiro lugar, a cibercultura enquanto ficção levanta uma questão: saber se é a técnica que é / foi capturada pela criação humana ou se é a criação humana que vem emudecendo e se torna, por isso, tecnologia. Depois, o mesmo investigador descreve em pleno território económico a citada hipótese de uma hiper-materialização como factor de reacção nascida num mercado que já avista os fantasmas da cibercultura -- ou seja, de um mercado que antevê uma crise global no sistema das artes, desse exacto sistema que sempre assentou na ligação entre a autonomia estética e o valor monetário.
Ainda para Stallabrass, e sintetizando os pressupostos de um dos seus conhecidos ensaios sobre estas temáticas («Money, Disembodied art, and the Turing Test for the aesthetics», 1997 (17) ), há um perigo que provém da pretensão monetária de proceder a uma fusão da desmaterialização digital com a hiper-materialização (objectual ou qualquer outra) -- aí estaria a cessação das ténues mas também fortes esperanças de democraticidade do e no ciberespaço.
Mantenhamo-nos no campo das contradições insolúveis, o que descreve uma muito vantajosa libertação da vacuidade do «pluralismo». Em primeiro lugar, Stallabrass fala de uma oposição entre todas as formas de desmaterialização (conceptuais, neoconceptuais, digitais) e a recorrente rematerialização sob a forma, nas artes objectuais, de uma utilização de materiais impositivos e ostentatórios (mais ou menos coincidentes com o «luxo proletário» de que falou em tempos Jeff Koons, ou com a arte da «razão cínica» de que agora fala Hal Foster a partir de Peter Sloterdijk, considerando o seu conhecido estudo Kritik der zynischen Vernunft / Crítica da Razão Cínica).
Sem desesperos, e pelo contrário, há aqui uma contradição dentro da contradição, de novo uma arte da técnica ao contrário da técnica. Pretendo testemunhar a vivificação presente de uma arte de rematerializações feita, mas uma arte que se produz por inversão da sofisticação objectual da «razão cínica», uma arte em que volta a ser a pobreza dos seus «meios» a investir-se em alternativa à pujante industrialização da cultura, que curiosamente também se manifesta aliada da complexificação ou supressão total das mediações (num registo claro de que a cibercultura gerou a famigerada «indústria de conteúdos» -- conceito ainda pobre para desde já nele centrarmos este debate).
Falei dessas expressões meta-estéticas num texto recente («A imobilidade da arte ou da pobreza à ostentação da pobreza, Artes visuais: dos anos 60 à actualidade»), o qual terminei com o exemplo dos usos fotográficos de uma Nan Goldin. É uma autora que pratica uma apropriação processualmente pobre do vivido (e para servir o vivido, como ainda afirmei). Ela descreve a sua obra deste modo: «For me taking a picture is a way of touching somebody (...) it's a caress».
Disse ainda nesse ensaio que, em Goldin, esta vontade de afagar o outro apenas se realiza (apenas nos aproximamos, e só nos aproximamos, da sua realização) no empobrecimento esteticamente dirigido da presença mediática da fotografia -- e poderemos vê-la nos seus aspectos cromáticos, composicionais, em suma, formais. Esta superação da mediação em nada se relaciona com quaisquer propósitos desmaterializantes.
Afagar o outro torna-se o acto de esfriar a mediação, a qual é inversamente proporcional à temperatura conteudística, ao sentimento conteudístico. Como a própria Goldin enuncia muito bem. Repito uma citação: «I'm looking with a warm eye, not a cold eye. I'm not analyzing what's going on -- I just get inspired to take a picture by the beauty and vulnerability of my friends (18) ». Nestes termos apenas se pode concluir que esta obra coloca-se perante a possibilidade de uma mediação estética pobre. Bastaria, para melhor nos ligarmos à sua processualidade, lermos a definição canónica de mediação prestada por Étienne Souriau no seu Vocabulaire D'Esthétique (19) : mediar é colocar algo entre dois pólos de uma obra. Mas quer mediar quer recusar tal instância, é sempre um trabalho interior à própria estética. Recusar a mediação é arriscar «empobrecer» a obra. É este «empobrecimento» que não é temido por Goldin, porque é dele que surge, paradoxalmente, a riqueza e veracidade de que somos investidos.
O mesmo se diria, por exemplo, de um autor como William Kentridge, notável desenhador e videasta (e autor de muito peculiares filmes de animação) sul-africano. Kentridge utiliza a técnica do video, mas ao mesmo tempo recusa a tecnologização da arte e fá-lo através dos seus desenhos, das suas animações e, obviamente, com os seus próprios videos (técnicas que, não por acaso, tomam politicamente o desenho por base) fechando um círculo de extrema coerência. Quando opta por meios pobres, o artista refere-se a uma aparência de ingenuidade que, insuspeitada e obviamente se torna arma de arremesso -- crítica, analítica e de compreensão sociológica.
Junto a William Kentridge poderíamos citar, entre outros artistas oriundos de contextos culturais periféricos (que têm recentemente redefinido tudo o que antes entendíamos, seguramente, por «representação») e de minorias étnicas, Jimmie Durham (20) e David Hammons. Todos eles são artistas de consciência radical, explicitamente por recusarem as grelhas argumentativas propiciadas pelos centros decisórios do pensamento e julgamento crítico do Ocidente. Na sua reclamação radical de uma alteridade descolonizada (em sentido lato) juntam-se ao que de mais exaltante tem produzido o denominado pensamento «pós-colonial» aplicado.
A questão pós-colonial -- contribuinte prioritária de uma redefinição de certas categorias estabilizadoras, na estética como na política: como «cultura», «vanguarda», «ideologia», «representação» «esquerda», «identidade», etc -- em nada se relaciona com nenhuma forma de oportunismo político ou politicamente correcto. Ela começa logo por sustentar uma verdade muito simples: a de que não existe uma arte pura, seja na formatação disciplinar (pintura, video, teatro, dança, etc), seja na razão conteudística.

4.
A arte mais entusiasmante do presente pugna por uma específica descolonização da cultura (ocidental, para começar em autocrítica) se quisermos aplicar o método de análise de Kristin Ross, em Fast Cars, Clean Bodies, Decolonization and the Reordering of French Culture (21) , o que pressupõe duas vias de trabalho: por um lado, é preciso revelar-se como e que processos utilizou o Ocidente colonial para, através da produtividade estética, se definir a si mesmo (é essa a tarefa de grande parte da obra de um Edward Said, desde Orientalism, em 1978, a Culture and Imperialism, de 1993, onde analisa obras de autores tão diversos como Kipling, Joseph Conrad, V. S. Naipaul, Frantz Fanon ou Verdi); em segundo lugar, será necessário verificar como, desprovido das suas possessões extraterritoriais ou ultramarinas, o mesmo Ocidente vai alterar os seus paradigmas, actos e definições de cultura (e ainda de política, como referi) -- o que K. Ross analisa tomando por base a realidade francesa: a da emergência do estruturalismo e do existencialismo por relação com a perda da Argélia, entre outros fenómenos.
Em «Freedom's Basis in the Indeterminate» (October nº 61 (22) ), numa abordagem do problema da tradução cultural, Homi Bhabha introduz-nos nesse surgimento de uma reflexão pós-colonial, propondo igualmente um duplo objectivo: em primeiro lugar, não é possível dar corpo ou amplidão à noção de representatividade democrática, ou seja, ao próprio conceito de democracia que surge enquanto norma, se essa representação se não alargar aos lugares que a homologação mediática faz por obscurecer; depois, é a própria cultura (matriz das «representações») que não pode ser compreendida sem uma concreta associação com a história, a tradução e uma inevitabilidade de hibridações; Said, num statement por mim várias vezes recordado: «Um dos resultados do imperialismo foi o de unir mais o mundo, e ainda que nesse processo a separação entre europeus e nativos tivesse sido insidiosa e fundamentalmente injusta, muitos de nós devemos agora considerar a experiência histórica do império como algo comum a ambos os lados» (23) .
Daqui é preciso que sobressaia o seguinte: não se pense que este reforço pós-colonial da democracia se resume a um problema de reconhecimento da alteridade nas identidades, de uma mera representação das minorias, de acesso ao «direito» de alteridade e à «outra» identidade -- o que está em causa é a descolonização total dos conceitos, e numa real descolonização conceitual as noções de representação ou de identidade não surgem exclusivamente ligadas à de enraizamento, como se viu em Said. E também em Gayatri Chakravorty Spivak (24) , quando nos avisa contra a «velha suposição antropológica que nos diz que alguém oriundo de uma cultura nada mais é que um exemplar dessa cultura».
Simplificando o pensamento de Homi Bhabha, diria que, apesar do reducionismo antes apontado, numa democracia representativa o problema (do tipo) da representação das minorias coloca-se com premência. E antes se colocara o da representação do Outro, ou seja, do colonizado. Regressando ao início destas discussões, consideraria como seu potencial desencadeador o livro, e a polémica subsequente, de Edward Said, Orientalism (como se vê, há aqui algo que antecipa em pelo menos 10 anos a exposição de Jean-Hubert Martin, «Les Magiciens de la terre» (25) ). Em Orientalism, pela primeira vez, se colocava em causa com toda a perspicácia a história da representação do Outro pela potência colonial -- concretamente, a britânica desde pelo menos o início do século XIX.
Para Edward Said, os estudos orientalistas em torno da cultura foram não mais que uma construção abstracta do próprio poder colonial e nunca uma tentativa ocidental para preservar e ampliar o conhecimento das culturas do Médio e Extremo-Oriente. Foram sim uma tentativa de ampliar um domínio desde sempre efectivado por vias militares, económicas e políticas. Com os estudos orientalistas se pretendeu, portanto, um alargamento da dominação colonial ao plano cultural.

5.
Mas não se pense que a democracia cultural se esgotaria na aplicabilidade de uma política («correcta») de diferenciação cultural, que depois se expressaria eventualmente na Internet como se o processo se concluísse assim num quadro de democratização perfeita e de futuro sem sobressaltos. Não, nem se reflicta muito mais nesse equívoco. Uma verdadeira política cosmopolita tem de superar os aparelhos de dominação e circulação (restrita, cada vez mais restrita) criados pelos centros decisórios do capitalismo internacional -- sejam eles o ciberespaço, tal como ainda o podemos conceber, ou o nosso Estado de Direito, como muito bem no-lo explicaram Derrida (em livros recentes em que expõe a ideia de hospitalidade e «cidade refúgio», por exemplo (26) ) e Alain Badiou.
Para este último não há mesmo cosmopolitismo sem uma simultaneidade vivificante da existência de singularidade radical com o universalismo. E pronuncia, em Saint Paul, La fondation de l'universalisme (1997), um aviso para a euforia transportada para o ciberespaço como o lugar de todos e de todas as comunidades; mas que comunidades? -- Badiou: «Tout ce qui circule tombe sous une unité de compte, et inversement ne circule que ce qui se laisse ainsi compter. C'est du reste cette norme qui éclaire un paradoxe que bien peu soulignent: à l'heure de la circulation culturelle instantanée, on multiplie partout les lois et règlements pour interdire la circulation des personnes».
Em seguida, concretiza a sua crítica à lógica dos «direitos humanos» e do «respeito pelas minorias», lógica que, como se verificará, já colonizou e se espera que não páre de colonizar a «democraticidade» do ciberespaço: «Cria-se a semelhança de uma não-equivalência para que a equivalência, ela mesma, seja um processo. Que devir inesgotável para todos os investimentos de mercado, com o fito de várias reivindicações e de pretensas singularidades culturais, para mulheres, homossexuais, handicapés árabes! E as infinitas combinações de traços predicativos, que fortuna! Os homossexuais negros, os Sérvios handicapés, os católicos pedófilos, os islamitas moderados, os padres casados, os jovens quadros ecologistas, os desempregados obedientes, os jovens envelhecidos! De cada vez uma autorizada imagem de novos produtos, de magazines especializados, de centros comerciais apropriados, de rádios "livres", de redes publicitárias dirigidas, e enfim de decisivos "debates de sociedade" em horas de grande audiência. Deleuze dizia-o directamente: a desterritorialização capitalista necessita de uma permanente reterritorialização. O capital exige, para que o seu princípio de movimento torne homogéneo o seu espaço de exercício, um surgimento permanente de identidades subjectivas e territorializadas, que, no fundo, nada reclamam para além de um direito de exposição idêntico aos outros, segundo uniformes prerrogativas de mercado. É a lógica capitalista do equivalente geral e a lógica cultural e identitária de comunidades e minorias formando um conjunto articulado» (27) .
Mas haveria que colocar outra objecção. Ainda que uma nova democratização de vozes alternativas, assim fragmentadas ao absurdo, pudesse efectivar-se pelas vias deste espaço difusório monetariamente controlado em permanência (28) , teríamos de nos confrontar com o limitadíssimo acesso à Internet que ainda vigora, e, por outro lado, mais ainda problemática se quedará a forma de acesso a certos sites, como ironiza Stallabrass: «Just as the Lisson Gallery (...) is a good deal harder to find than your local branch of McDonald's, so some places in Net-land are less well connected than others -- and this may be a matter of exclusivity as well as lack of resources» (29) .
Deixemos agora um pouco de lado a impertinência (e excessiva esquematização) da divisão da história, da arte em particular, em décadas, e tentemos a seguinte síntese finalizadora -- introdutória à parte seguinte deste texto. Desde os anos 60 (do conceptualismo linguístico ao minimalismo), passando pelos anos 70 (das tentações imaterializadoras, teatrais ou arquitecturais do minimalismo -- que escolheu partir tanto de formas estruturais das arquitecturas suburbanas, quanto da fenomenologia husserliana ou pontiana -- à «impureza» desconcertante ou à «realidade interior», corpórea e politizada do pós-minimalismo, profundamente afectado por outro «pós»: o do Vietname), ou pelos anos 80 (que viram florescer o conflito de coexistência entre um neo-conceptualismo pós-estruturalista e o «regresso à pintura», à «nova subjectividade», à «new image» e à representação ditirâmbica -- Lüpertz), desde a arte-texto à arte-corpo, em síntese finalizadora, desde há quatro décadas (mas porque não desde o princípio do século XX, a culminar agora naquilo que chamei de «estética da ostentação da pobreza» e Hal Foster de «retorno da realidade»?) que a arte contemporânea se tem polarizado e des-polarizado além e aquém das técnicas. Ou seja, além e aquém dos seus próprios meios ou sentidos. Tudo para hoje aceder ao tempo das mais radicais de entre todas as rematerializações. (30).


NOTAS:

(1)
Hal Foster / Rubén Gallo, «The Return of Shok and Trauma», TRANS >, 3 / 4, New York, 1997, p. 48. Numa outra entrevista, Foster junta a este breve statement uma consideração fulcral para a partir de ambos estes sinais edificar todo um programa de acção e interpretação que cruza as estéticas e o actual tempo histórico. Refiro-me, neste segundo lugar, à entrevista, mantida por Alex Coles, «Trauma Studies and the Interdisciplinary» (in Alex Coles & Alexia Defert, eds., The anxiety of interdisciplinarity, BACKless Books, London, 1998, pp. 156-168), onde Foster elege o artista que para ele melhor representa esta evolução (por ter passado e encimado ambas as derivas) do simulacro ao «retorno da realidade», o que pressupõe, tal como o ensaista teoriza o trabalho de Cindy Sherman, um revulsivo ataque contra a imagem e a representação (outra perspectiva, sobretudo numa linha de oposição às teses feministas, terá Rosalind Krauss em «Cindy Sherman: Untitled», título provocatório que remete a análise para questões composicionais / formais, in Bachelors, The MIT Press, Cambridge, Mass., 1999).
Mais concretamente, como em The Return of the Real (The MIT Press, 1996), propõe-se um afastamento da tese baudrillardiana, por um lado, ou lacaniana, por outro, de que na realidade tudo se percebe em forma de écrans representacionais onde pontua um tipo de construção social da subjectividade de que a arte daria conta através de um criticismo de tipo pós-estruturalista. Hal Foster afasta-se assim das teses do seu livro Recodings, Art, Spectacle, Cultural Politics, Bay Press, Seattle, 1985, e consolida os resultados do seu estudo em torno do surrealismo (ponto de passagem obrigatório para esta revulsividade da imagem, onde o real, como trauma, perpassa todas as representações por via da abjecção, do mimetismo -- nas esculturas recentes de Robert Gober, por exemplo -- e do informe batailleano), intitulado, Compulsive Beauty (MIT Press, 1993). Como Sartre (em L'être et le néant, de 1943) ou Merleau-Ponty, Lacan, em Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (Seuil, Paris, 1973), coloca o «olhar» no mundo e estuda todo um conjunto de convenções e estratégias defensivas (intermediações) para com ele lidarmos.

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(2)
Em três recentes publicações surge-nos, a este propósito, Greenberg em discurso directo através de entrevistas inéditas: Ann Hindry, «Entretien Avec Clement Greenberg», Les Cahiers du Musée National d'Art Moderne, nos. 45 / 46, Centre Georges Pompidou, Automne / Hiver, 1993; Saul Ostrow (interview par), «Clement Greenberg -- L'indéfinissable qualité», Artpress (Spécial Où est passée la peinture ?), Hors Série nº 16, Paris, 1995; Thierry De Duve, Clement Greenberg Entre Les Lignes, suivi d'un débat inédit avec Clement Greenberg, Disvoir, Paris, 1996.

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(3)
Michel Maffesoli (interv. par N. Bourriaud et Philipe Nassif), «L'interprétation des raves», in «Techno, anatomie des cultures électroniques», Artpress, hors série 19, Paris, 1998, pp. 157-162

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(4)
George McKay, Senseless acts of Beauty -- Cultures of Resistence since the Sixties, Verso, London, 1996.

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(5)
Trata-se de um oportuníssimo documento, imprescindível mesmo, sobre a condição nómada da cultura actual; sobre as especificidades da contracultura dos 90s em particular, no qual McKay utiliza logo em Introdução duas epígrafes esclarecedoras: «DiY culture was born when people got together and realized that the only way forward was to do things for themselves .... Ingenuity and imagination are the key ingredients .... Free parties, squat culture, the traveller movement and later Acid House parties pay testament to the energy and vision of people who decided it was now time to take their destinies into their own hands» («COSMO», activista DiY); «we have a whole vision of how good life could and should be, and we're fighting anything that blocks it. This is not just a campaign, or even a movement; it's a whole culture» (Merrick, «road protester»).
De seguida, a caracterização de McKay: «like the 1960s version we tend to associate the word "counterculture" with, DiY Culture's a combination of inspiring action, narcissism, youthful arrogance, principle, ahistoricism, idealism, indulgence, creativity, plagiarism, as well as the rejection and embracing alike of the technological innovation» (George McKay, org., DiY Culture, Party & Protest in Nineties Britain, Verso, London, 1998, p. 2).

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(6)
Sublinhe-se que, para Virilio, a «inércia polar» supõe de facto um ataque ao «regresso ao corpo» e à sua consciência (física e libertariamente vivificada) -- ela releva de uma profunda extensão das políticas de controlo contemporâneo, mas mais do que isso: «Poderá imaginar-se sequer a perda da extensão e da duração constitutivas do eixo de referência do corpo? Poderá conceber-se seriamente o esquecimento do lugar, de todos os lugares, em proveito exclusivo da egocentragem comportamental, única polaridade do ser? -- de um ser menos "no mundo" que em si mesmo. (...) Tudo o que estava em jogo no ordenamento do corpo territorial joga-se hoje não apenas, como outrora, na organização do corpo social, mas no controlo do corpo animal, desse ser humano situado não tanto no mundo como em si» (Paul Virilio, A Inércia Polar, trad. port. Dom Quixote, Lisboa, 1993, pp. 115, 116, 117).

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(7)
É já por demais conhecido quer a definição quer o seu uso. A noção de informe, curta e misteriosa, tem permitido reavaliar grande parte da produção plástica deste século, desde o surrealismo mais «ortodoxo» (contra o qual se sublevou, bem como todo o núcleo da obra de Bataille) ao «dissidente», e daí até à actualidade, de Pollock a Mike Kelly.
Bataille emprega-a num Dictionaire critique, dicionário publicado em forma de «folhetim» em vários números dessa aventura inédita chamada DOCUMENTS. Archéologie, Beaux-Arts, Ethnographie, Variétés. O pequeno texto saiu no nº 7, 1929.
Tudos os números fac-similados se encontram reeditados como: DOCUMENTS (Vol I e II), Jean Michel Place, Paris, 1991.

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(8)
Simone Weil, La pesanteur et la grâce (1947), trad. esp. La gravedad y la gracia, Ed. Trotta, Madrid, 1994, p. 105.

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(9)
Ver Jeffrey Deitch: Artificial Nature (cat.), 1990; Post Human (cat.), 1992, Deste Foundation for Contemporary Art, Athens (Gr.).

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(10)
Heidegger, A Origem da Obra de Arte, trad. port. Edições 70, Lisboa, 1990, p. 11, 12.

(11)
Ver Martin Heidegger, Die Bedrohung der Wissenchaft, 1937-38.

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(12)
O processo evoluiu, como se sabe, desde o transcrito diagnóstico de Heidegger. Logo no famosíssimo relatório de 1977, La Condition Postmoderne, Lyotard afirma: «Devido aos conhecimentos serem traduzíveis em linguagem informática e o ensino tradicional ser assimilável a uma memória, a didáctica pode ser confiada a máquinas que liguem as memórias clássicas (bibliotecas, etc), bem como os bancos de dados a terminais inteligentes postos à disposição dos estudantes.
A pedagogia não sofrerá por isso necessariamente, já que será preciso, de qualquer forma, ensinar algo aos estudantes: não os conteúdos, mas o uso dos terminais, ou seja, novas linguagens. (...) A questão, explícita ou não, posta pelo estudante profissionalista, pelo estado ou pela instituição de ensino superior já não é: é verdadeiro?, mas: para que serve? No contexto de mercantilização do saber, esta última questão significa frequentemente: é vendável? E, no contexto de aumento do poderio: é eficaz?»
Derrida, em Mal d'Archive.Une impression freudianne (Galilée, Paris, 1995), de certo modo contribui, largos anos depois, para reposicionar esta «pressa» lyotardiana, esta aceleração triunfal da nova realidade de armazenamento da «informação» como futuro. Em Mal d'Archive comenta-se que tal deriva tecnológica de conservação enfrenta uma cada vez maior (quanto maior for a vontade e vocação conservacionista) fatalidade de perda, desaparecimento, corrosão -- o modelo é o da pulsão de morte psicanalítica.
Noutro momento e circunstância: «le maximum de vie (le plus de vie), mais de vie déjà pliée à la mort ("plus de vie"), voilà qui devient exportable le plus longtemps et le plus loin possible -- mais de façon finie: ce n'est pas inscrit pour l'éternité, car c'est fini et non seulement parce que les sujets sont finis, mais parce que l'archive dont nous parlons est aussi destructible. La plus grande intensité de vie "en direct" est captée au plus près pour être déportée au plus loin. S'il y a une spécificité, elle tient à la mesure de cette distance, elle tient à cette polarité qui tient ensemble le plus proche et le plus lointain». (Derrida / Bernard Stiegler, Échographies de la télévision, Galilée, Paris, 1996, p. 48.) Trata-se aqui de um tipo de contradição e de um paradoxo que reporto para todo o meu texto como a «marca» do nosso tempo, o tempo do armazenamento frustrado.

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(13)
Ver Edward W. Said, «Reflexions on Exile», Granta, 1984. Republicação: AA. VV., Heart of Darkness (cat.), Kröller-Müller Museum, Otterlo, December, 1994, pp. 17-28.

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(14)
Julian Stallabrass, Gargantua.Manufactured mass culture, Verso, London, 1996, p.48.

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(15)
Paul Virilio, Cybermonde, la politique du pire, 1996; trad. esp. El Cibermundo, la política de lo peor, Cátedra, Madrid, pp. 19, 20.

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(16)
Qualquer política ou acção produtiva deverá dispensar a vitimização e a posição de acossamento e resistência. Por outro lado, não excluo de todo uma posição de «resistência moral» à «ficcionalização do presente». De qualquer modo, não se proporá a recorrência ou o apelo a uma «moral de resistência», pois, em face do exposto, é já a própria realidade (de existência) das artes que está tão imersa no que chamo de condição de contradição (ideia que proponho como substituta do inerme «pluralismo»), que não «necessitamos» de resistir ao poder de uma troca da realidade pelo modelo.
Contudo, registe-se o discurso de MarcAugé na última secção de La Guerre des rêves: exercices d'ethno-fiction (1997): «Se a "ficcionalização" do presente se substitui (ou se acrescenta) hoje à mitificação da História, ao primeiro encantamento (mitificação das origens) e ao segundo (mitificação do futuro), se faz parte da sua lógica produzir um eu igualmente "ficcional" (...) devemos definir (...) uma moral de resitência. (...) Quem serão amanhã os resistentes? (...) Todos os criadores que, mantendo de uma maneira ou de outra a circulação entre imaginário individual, imaginário colectivo e ficção, não renunciarem a suscitar o milagre do encontro».
Entretanto, há uma «moral de resistência» à «ficcionalização», mas também se vêm registando na Internet várias formas de ciberguerrilha, uma «resistência» activa, de ataque, de defesa-ataque mais propriamente se tomarmos o exemplo da luta do EZLN, Exército Zapatista de Liberación Nacional, em Chiapas, México. Este é um caso paradigmático de luta e de resultados concretos -- é sabido que a sua ciberguerrilha vergou o governo mexicano corrupto à negociação (Ver Roger Barta, «Tropical Kitsch: Melancholy and War in Cybernetic Space», in «Being on-line Net subjectivity», Lusitania 8, New York, 1996; ou Jason Wehling, «Guerre des réseaux et activisme sur Internet» e François Badaire, «Une Guérrilla post-idéologique, La révolte contre le Mexique imaginaire», in «Guérrillas», Blocnotes--Contemporary Art & Culture 12, Paris, 1996).

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(17)
Julian Stallabrass, «Money, Disembodied art, and the Turing Test for the aesthetics», in J. Stallabrass, Susan Buck-Morss, Leonidas Donskis, Ground Control, technology and utopia, Black Dog Publishing, London (e Vilnius, Lituânia), 1997, pp. 62-111.

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(18)
«On Acceptance: A Conversation -- Nan Goldin with David Armstrong and Walter Keller», in Nan Goldin, I'll be your mirror (cat.), Whitney Museum of American Art, New York, 1996, p. 450.

(19)
Cfr. Étienne Souriau (A. Souriau, dir.), Vocabulaire d'Ésthetique, PUF, Paris, 1990.

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(20)
Cfr. «Fraude contra fraude ?» (entrevista e ensaio, pp. 115-127), in Carlos Vidal, Democracia e Livre Iniciativa, política, arte e estética, Fenda, Lisboa, 1996. Imprescindíveis são os seguintes documentos: Jimmie Durham, A Certain Lack of Coherence, Writings on Art and Cultural Politics, Kala Press, London, 1993. E a monografia: AA VV, Jimmie Durham, Phaidon Press, London, 1997.

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(21)
Cfr. Kristin Ross, Fast Cars, Clean Bodies, Decolonization and the Reordering of French Culture, October Books, MIT Press, Cambridge, Mass., 1995.

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(22)
Homi K. Bhabha, «Freedom's Basis in the Indeterminate», October nº 61, 1992; republicação «"Fireflies Caught in Molasses": Questions of Cultural Translation», in October.The Second Decade, 1986-1996, MIT Press, Cambridge, Mass., 1997 (pp. 211-222). Consultar ainda: Homi K. Bhabha (ed.) Nation and Narration, Routledge, London, New York, 1990; e Homi Bhabha, The Location of Culture, Routledge, 1994.

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(23)
Edward W. Said, Cultura e Imperialismo, trad. esp. Anagrama, Barcelona, 1996, p. 25.

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(24)
Cfr. Gayatri Chakravorty Spivak: In Other Worlds.Essays in Cultural Politics, Routledge, London, New York, 1988; The Post-Colonial Critic, Interviews, Strategies, Dialogues, Routledge, 1990; Outside in the Teaching Machine, Routledge, 1993.

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(25)
Jean-Hubert Martin (org.), Les Magiciens de la Terre, Centre Georges Pompidou, Paris, 1989.

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(26)
De Jacques Derrida, introdutoriamente poderá ler-se o pequeno Cosmopolites de tous les pays, encore un effort [comunicação apresentada ao 1º Congresso das Cidades-Refúgio, Estrasburgo, Março de 1996], Galilée, Paris, 1997.
Depois seguir-se-á por Anne Dufourmantelle invite Jaques Derrida à repondre De l'hospitalité, Calmann-Lévy, Paris, 1997.

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(27)
Alain Badiou, Saint Paul, La fondation de l'universalisme, Collège International de Philosophie / PUF, Paris, 1997, p. 11.

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(28)
Também, como atrás Germano Celant, William Burroughs trata a câmara cinematográfica (e, depreende-se, outros meios de registo e mediação tecnológicos) como entidade inexpressionista, ou seja, tendo ainda em mente o anterior statement de Alain Badiou, ele sabe que a câmara pode ser um meio de produção de liberdade se souber lidar e impor-se aos constrangimentos monetários; é inexpressionista porque pode receber o conteúdo que lhe queiramos dar -- abre-se então um conflito ou um relacionamento (estratégico, sábio ou distante) entre o indivíduo X (uma singularidade, um Orson Welles, etc) e o box-office. Como lidar com esta circunstância? Decerto que não encontraremos uma receita mágica.
Burroughs, em «Prenez Nirvana» (ensaio recolhido para uma edição de Essais -- I e II -- apenas editada em França sob a responsabilidade de Gérard-Georges Lemaire; Chistian Bourgois Ed., Paris, 1996): «La caméra accomplit un nirvâna d'acceptation sans critique . Elle ne rejette rien. Elle ne s'attache à rien. Elle n'a peur de rien. Elle ne désire rien. Elle ne hait rien. Elle n'aime rien. La caméra et le magnétophone sont des modèles grossiers de votre propre installation toute montée; vous pouvez faire votre propre film à partir d'un point d'interférence zéro. Une fois que vous interrompez l'interférence, les films se font d'eux-mêmes. Pourquoi contribuer au chantage du box-office? Pourquoi ne pas faire vos propres films? Vous avez tous les écrans que vous pouvez occuper et tous les projecteurs dont vous avez besoin. Tournez donc la caméra zéro vers vous. Vous ne voyez de toute façon vous ne voyez rien d'autre.
Caméra. Action» (I, p. 124).

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(29)
Julian Stalabrass, Money, Disembodied Art ...., op. cit., p. 80.
Para já não falar, claro está, do desapossamento de «todos» os sites por todos aqueles que vivem no «Terceiro Mundo Digital», que é um espaço sem fronteiras, como nos diz o curator Olu Oguibe, numa curiosa entrevista on-line: «I have always made a distinction between what is customarily referred to as the "Third World" and what I have called the "Digital Third World". (...) While young, college graduates in Bengal are writing software for Silicon Valley, thus locating themselves among the global, digital elite, there are millions of people in America as in India, who will never have access to the Net or play an active role in its evolution. (...) These are the Digital Third World, and they are to be found across the globe, not just in Bangladesh or Zimbabwe» (Olu Oguibe, «The Digital Other», Flash Art, vol. XXXII, nº 206, May - June, 1999.

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(30)
A eficácia performativa do termo neovanguardista «desmaterialização da arte», hoje muito epigonalmente glosado (desta feita fora do âmbito das desmaterializações digitais), deve-se a Lucy R. Lippard, ensaista, curator e activista política. A autora atribui a génese e consolidação do termo a um período situado entre 1966 e 1972, para logo no ano seguinte ter editado uma exaustiva antologia intitulada Six Years, assim apresentada na própria capa: «Six Years: The dematerialization of the art object from 1966 to 1972: a cross-reference book of information on some esthetic boundaries: consisting of a bibliography into which are inserted a fragmented text, art works, documents, interviews, and symposia, arranged chronologically and focused on so-called conceptual or information or idea art with mentions of such vaguely designated areas as minimal, anti-form, systems, earth, or process art, occuring now in the Americas, Europe, England, Australia, and Asia (with occasional political overtones), edited and annoted by Lucy R. Lippard» (republicação: Six Years, University of California Press, Berkeley, 1997).
Poderíamos dizer, em sucinta conclusão, que aguardamos, o que seria deveras interessante para este nosso estudo, uma recolha idêntica para as facetas das desmaterializações digitais na estética, as que precederam e se imbricam na explosão da Internet.

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