15 de fevereiro de 2000

 

Sob o signo de Paglia
por João Sousa Cardoso
 


Quando Camille Paglia comenta, numa breve síntese do seu programa intelectual, que "uma educação pagã fortaleceria o espírito, endureceria a vontade e seduziria os sentidos; a nossa filosofia deveria ser contemplativa e pugilística", parece-me que lança dados de inestimável importância num panorama cultural asséptico dominado pelo cinzentismo, pela dessensualidade e circunscrito à pobreza imaginativa do "politicamente correcto" como é, actualmente, o do Ocidente. A filosofia de Paglia recusa a complacência e investe, com ferocidade, contra a cultura da vítima que se tem vindo a instalar nas sociedades pós-industriais, tecendo críticas implacáveis aos mais diversos grupos doutrinários e fascizantes desde o movimento feminista à direita conservadora ou ao activismo gay. Paglia é a última heroína romântica, a última guerreira amazona que se bate por um regresso ao paganismo, numa tentativa de reequilíbrio entre Apolo e Dioniso.

Apressadamente colocado na gaveta, aquando dos primeiros ataques feministas ao patriarcado, Freud fundou um modelo de pensamento e inaugurou conceitos que, segundo Paglia, ainda não explorámos devidamente. Assumir Freud significa fugir ao dogma. Significa problematizar ideias sedimentadas, em muitas das quais assentam os principais pilares da organização social e cultural do regime capitalista. Entender Freud é automaticamente assumir o risco.
A sexualidade infantil será, provavelmente e a par do incesto, o maior dos tabús que persistem na nossa civilização, porque gera demasiado desconforto, desestabiliza o que há de mais seguro e certo como a pureza das nossas crianças. A celeuma em torno da versão mais recente de "Lolita", na América e a histeria colectiva em relação às redes pedófilas, na Europa, provam o pouco à-vontade com que ainda nos relacionamos com a sexualidade infantil e criam graves equívocos na vivência quotidiana entre adultos e crianças. A última década fez com que professores se retraíssem nas manifestações de afecto com alunos e preocupou, em demasia, pais e famílias. O romance familiar de que fala Freud, nunca foi tão cerrado, contribuindo para isso, sem dúvida, a redução do número de filhos por casal e a simplificação das próprias relações familiares até se impor a família nuclear como modelo dominante. É urgente entender que acompanhamento e vigilância não podem chegar a um estado de tensão permanente capaz de bloquear as relações das crianças com o mundo exterior. Paglia acredita que Rousseau e a imagem que desenha do universo infantil - assexuado, ingénuo e, progessivamente, corrompido por uma sociedade perversa - é pura ficção, um mecanismo que sossega e legitima ideias do mundo pouco profundas.
Paglia assume a sexualidade como uma dimensão inata do ser humano, pelo que pensar que esta aparece, subitamente, com a entrada na puberdade não é mais que um esquema de raciocínio tão distorcido e artificioso quanto o é a fronteira estabelecida socialmente entre a infância e a consumação da idade adulta. A Lolita de Nabokov não é mais do que uma construção artística que se propõe pensar a perversidade e poder manipulativo que o universo infantil pode deter. Lolita seduz Humbert Humbert e nós, como seres omnipresentes e exteriores à acção, entendemos claramente até que ponto o seduzido passa de transgressor a joguete nas mãos de uma criança de onze anos. A novela de Nabokov rompe, decididamente, com um tabú ocidental e confirma a realidade instável da sexualidade humana.

No campo artístico, parece-me importante que artistas, teóricos e pensadores em geral redescubram a história e se detenham face ao (não tão subliminar como hoje o fazemos) texto sexual de grandes momentos da arte: "Muitas das grandes obras de arte do Renascimento tinham elementos de pornografia infantil, em particular o grande David de Donatello, que hoje em dia levaria Donatello à cadeia! Em meados do século XIX, havia uma tradição entre pintores e fotógrafos, como Lewis Carrol, de retratar meninas inteiramente nuas ou colocadas em situações históricas, com trajes e afins que revelam a nudez do corpo em posições que hoje, depois de Freud, nos pareceriam enormemente perversas e sexualizadas." refere Paglia, indo mais longe ao associar a figura do homem adulto de Humbert Humbert ao arquétipo do pai - logo, ao tabu da relação incestuosa na nossa sociedade, "devemos lembra-nos que as duas maiores peças da história, o Rei Édipo de Sófocles e Hamlet de Shakespeare, contêm temas de incesto. Parece que estamos sempre, sempre, a voltar a este problema."
Agrada-me que a última Bienal de S. Paulo tenha recuperado e actualizado o conceito de antropofagia (o percurso da arte brasileira do século XX parece-me, aliás, um caso paradigmático da intersecção de Apolo e Dioniso num processo canibal entre a radicalidade indígena e a realidade do mundo, "comer a carne, deitar fora os ossos") e sido capaz de anunciar a urgência da reintrodução da visceralidade, da ancestralidade e da violência (o tal "pugilismo") no debate artístico, a verdadeira luta intelectual: honesta e implacável.
A teoria sexual tem-se mantido, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, num estado de caos e as artes denunciam, na sua generalidade, o pudor de quem não foi, ainda, capaz de ultrapassar, concreta e definitivamente, o último constrangimento, o derradeiro espartilho da moralidade pública. Não falo só de imagens. Refiro-me sobretudo ao espírito alerta, inquieto e selvagem que deve ser o do artista. Paglia defende que "a compreensão do erotismo regrediu à medida que a questão ideológica se tornou dominante" e, talvez por isso, eu encontre numa obra como a de Nan Goldin o gesto radical que se subtrai à ordem do grande corpo social que não descubro no trabalho de Cindy Sherman. A um passo da abjecção, a um passo da pornografia, muito próxima das questões ligadas à sexualidade, Sherman tem o cuidado de nunca pisar território obsceno. Aparentemente dionisíaca, Sherman não abdica da rede segura da racionalidade e do alibi oportuno das próteses e do artifício, tornando-se uma fiel aliada do grande teatro do mundo, da desgastada cultura do simulacro.
Nan Goldin, pelo contrário, constrói um percurso no fio da navalha por assumir, sem cedências, o risco da crueza e do absurdo, num manifesto hino à vida e ao amor. A fotografia passa a desempenhar o papel vital de mediação entre a artista e a marginalidade do mundo em que vive. Goldin age compulsivamente, convicta da capacidade fotográfica de retenção da alma do fotografado, numa luta gloriosa contra a morte. Nan Goldin tem a destreza de um boxeur, no desafio, por vezes de uma insolência heróica, dos limites do Humano, concebendo o acto criativo como realidade que desconhece, em absoluto, a convenção social. Não há lei na arena!
As realidades paralelas à visualidade mainstream devem voltar a incluir as referências dos artistas, para que o território criativo se mantenha, por definição, campo da liberdade mais absoluta, subversiva e, acima de tudo, interventiva no tecido social.
"O sexo é animalidade e artifício, uma interacção dinâmica entre natureza e cultura. Para o estudar é preciso recorrer ao testemunho da arte e procurar elementos em todas as fontes académicas das ciências sociais e naturais.(...) Para mim, o máximo poder do universo é a natureza. Porém, como já disse repetidas vezes, o simples facto de a natureza ser suprema não significa que nos devamos render a ela. Assumo a opinião do período final do romantismo de que tudo o que de grande houve na história do Homem foi realizado em desafio à natureza. Lei, arte e tecnologia são mecanismos de defesa, linhas apolíneas traçadas contra a turbulência dionisíaca da natureza." refere Paglia, constatando que o natural no Homem deve, para bem da evolução intelectual das sociedades, sujeitar-se a permanentes distenções e experimentações tão livres quanto éticas. Hoje, num período de uma suposta cientificidade universal e de uma neutralidade tipicamente yuppie, a coragem para deslocar práticas e ideias, geralmente ocultas pelo discurso decoroso, para o espaço aberto da discussão artística é mais necessária do que nunca. Nan Goldin é claramente um exemplo brilhante de como o fazer com toda a legitimidade.
É, neste contexto, que foi com grande entusiasmo que recebi a exposição inaugural do espaço Caldeira 213. Pela primeira mostra, pressente-se um espaço realmente alternativo, uma contraproposta válida e forte ao sistema instalado das arte no Porto, um grupo de jovens artistas com convicções próprias e na defesa de uma estética de risco. Numa determinada passagem de "Vamps and Tramps", Paglia descreve o cenário da Yale que encontra nos anos 90: "Voltando à biblioteca de Cross Campus, que brilhava de nova quando eu parti, fiquei horrorizada ao encontrar as cabinas das casas de banho das mulheres cobertas de inscrições bizarras e vociferantes. Tinham pouco humor ou obscenidade; as imagens eram principalmente de náusea, repugnância e auto-abominação.(...) Quando as raparigas de Brown provocaram furor nacional em 1990, ao divulgarem os nomes de supostos violadores nas casas de banho, a imprensa passou completamente ao largo da história real: porque é que sórdidas casas de banho foram então o fórum da auto-expressão de pretensas futuras líderes? Estas instalações sanitárias, convertidas em vomitoria pagã, oferecem às estudantes o único ponto de encontro do campus com a sua própria fisiologia."
Com trabalhos que me despertaram uma atenção especial como a banda desenhada de Andy Candy ou a "Capela dos ossos" (um quarto replecto de motivos religiosos prolongado pela fantástica vista sobre a Sé do Porto), foi, curiosamente, uma acção colectiva realizada em duas casas de banho, que, pelo espírito selvagem, me surpreendeu, nesta exposição "desAUTORizado". Completamente graffitadas, reconheci as duas divisões como, indiscutivelmente paglianas! Ao contrário do que é relatado no excerto anterior, estas casas de banho representam o espaço de encontro privilegiado com a fisiologia que são os sanitários, mas celebra-o com o humor e a obscenidade que só podem ser verdadeiramente radicais e absolutamente impróprias -pelo menos no presente momento - para o sistema galerístico tradicional português. Por comentários como "O clitóris: extensão cerebral feminina", "História da pila gira com acne", "Pinta os lábios, gaiata!" e o grande mural "Mais vale ser uma cadela que uma galinha", estes jovens artistas não caem na exausta armadilha da ironia, antes recuperam esta prática dos sanitários e transformam-na num estimulante manifesto de regresso ao natural, ao animal, ao visceral, à esfera do dionisíaco.
Aplaudo de pé, acções desta ordem vindas de pessoas finalistas ou recém-formadas da Faculdade de Belas Artes do Porto. Pela ausência de sentido carreirista e, sobretudo, pela rara coragem no panorama das nossas artes plásticas. Só a continuidade de um trabalho empenhado poderá, evidentemente, confirmar e garantir o optimismo que me inspirou este projecto, mas esta exposição comprova, desde já, que é possível desenhar projectos muito válidos, paralelos às grandes instituições, na cidade do Porto.
O Ocidente vai entender, mais cedo ou mais tarde, para além do bem e do mal das evoluções tecnológicas, que o nosso entusiasmo pelo progresso civilizacional deverá ser, cada vez mais, compensado pela redescoberta do indivíduo enquanto ser natural. Nenhuma bandeira ideológica pode romper com determinados pressupostos da natureza humana, nenhuma estrutura artificial pode ocupar equilíbrios que só o instinto animal nos confere enquanto espécie. Compete-nos entende-los, aprender a lidar com eles e criar, como seres culturais que somos, teias mais complexas e desafiadoras.
Quando foi noticiado, há alguns dias que o governo britânico se preparava para pôr em prática um programa, nas escolas públicas, com vista à redução do número de mães adolescentes que consistia, tão só, no fazer as jovens estudantes ouvir, diariamente, por períodos de meia hora, gravações com o ruído de bebés a chorar, percebi que a educação em Inglaterra reveste-se de uma muito duvidosa seriedade e cumpre as regras mais perversas da manipulação do cidadão. Considero francamente mais inteligente uma medida como a recente decisão de distribuição gratuita da "pílula do dia seguinte" nos liceus franceses, iniciativa da Ministra da Educação, inserida num plano de "educação para a sexualidade, para a contracepção e para a vida". Paglia discorda da entrega de preservativos e pílulas, um papel que diz competir a instituições médicas, mas entre o absurdo e profundo desrespeito pelas liberdades individuais no primeiro caso e o segundo, parece-me claro que o último se inscreve numa função pedagógica que abre espaço à discussão e respeita os jovens como donos da sua sexualidade. A educação é, decididamente, "o pilar de uma verdadeira justiça social".
Os artistas de hoje, não se podem furtar, pois, a este fundamental papel educativo. E, por educação, compreendamos subversão, transgressão e, sobretudo, agilidade de um espírito atento. A criação artística deve ser o terreno de uma permanente e insatisfeita auto-superação. Para isso, há que excluir terminantemente o fundamentalismo como modo de ver o mundo, porque, parecendo próximas, entre este e uma atitude de radicalidade há um fosso imenso que os torna opostos. O primeiro assenta num raciocínio obstinado e cristalizado. O segundo é aberto, disponível e apaixonado.
Paglia fecha, habitualmente, as conferências em que participa com um apelo: "Odeiem o dogma. Amem a aprendizagem. Amem a arte". Faço minhas as suas palavras.


João Sousa Cardoso
Porto, Janeiro 2000.

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