Orgânico Mutante: Uma reflexão sobre a condição contingente da arte e o lugar da sua sobrevivência*
por Miguel Leal
 

    *Este texto resultou de duas conferências, proferidas respectivamente na FBAUP (Porto) e na ESAP- Extensão de Guimarães, em Março/Abril de 2000.

 

    Recordámos uns aos outros que o movimento era
    a lei da estratégia e começámos a deslocar-nos.
    T. E. Lawrence


Orgânicos Mutantes, 10 fotografias digitais, 30x40 cm cada, 1999 (pormenor).

    1.

Durante o processo que conduziu à exposição PROJECTO BUNKER (1996-99), realizada no CAPC de Coimbra (Dez.99 - Fev.2000) ao confrontar-me com a inconstância daquelas geleias informes que se escapavam entre os dedos, e que vieram a dar origem às fotografias intituladas Orgânicos Mutantes, acabei por entendê-las não apenas como uma materialização possível daquilo que se vinha tornando o Projecto Bunker, mas também como uma intensa metáfora da condição contingente e elástica da prática artística. Apercebi-me então que, de uma forma mais ou menos consciente, havia uma genealogia para aquelas imagens que se enraizava em projectos anteriores. Tive, também, a percepção de que a intricada ficção em que o projecto se havia transformado jogava exactamente entre a variabilidade elástica da prática artística e a aparente rigidez cadavérica da sua objectualização. Esta condição paradoxal desdobrou-se, assim, como uma resposta inconsciente aos maniqueísmos e polaridades que frequentemente envolvem o nosso entendimento da realidade, e muito particularmente do fenómeno artístico.
Pensei, na altura, esta breve reflexão como um cruzamento entre a perspectiva do espectador e o posicionamento implicado do artista, que não sendo exactamente a multiplicação proposta pelo "Je est un autre" de Rimbaud, acabou por configurar um desdobramento do sujeito entre o ver de fora e o ver de dentro, numa constante troca de posições.

Nessa busca genealógica, gostaria de recordar, em especial, um vídeo ("Pulsar") que realizei em 1998. Parte integrante de uma instalação apresentada no Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, intitulada Uma Visão Herética do Mundo, resultou de uma curiosa sucessão de acasos e decisões. De facto, como já tive a oportunidade de escrever, os processos de "fazer" arte revelam interessantes reverberações da tensão entre a razão e o caos. Apesar das diferenças, há invariantes que indicam que todo o acto criativo acaba por jogar-se constantemente entre os pólos do acaso e da necessidade, do caos e do controlo. A própria ideia de experimentação, tão necessária à particular afirmação da arte, está pois ligada invariavelmente aos reajustes necessários entre essas várias polaridades. Sem a abertura do acidente, sem a surpresa do acaso, o nosso entendimento do processo artístico seria necessariamente outro, sem dúvida bem mais enfadonho. O abismo luminoso do acidente, capaz de gerar novos e imprevisíveis acontecimentos, é assim matéria fundamental para a sobrevivência da arte. A fragilidade que essa abertura ao acidente corporiza, aproxima-a às contingências incontornáveis da própria vida, contribuindo assim para que se possa pensar que é exactamente a partir dessa condição contingente que a arte vai encontrando as modalidades necessárias a essa sobrevivência (LEAL, 2000).
Esse vídeo, um loop infinito, não é mais do que o registo magnético de um acontecimento paradoxal. Colocada a câmara numa sala totalmente às escuras e ligada em circuito com um monitor para a qual está dirigida, esperar-se-ia uma total ausência de imagem no registo da gravação. É então que os dispositivos automáticos de focagem e controlo de exposição da câmara acabam por iniciar uma procura incansável daquilo que confiam encontrar, mas que na realidade não está lá. Assim, esse estranho pulsar nega decisivamente a condição de índice inerente ao acto de registo magnético das imagens, desenhando uma espécie de grau zero do vídeo — sem referente e, mais importante do que isso, capaz de se replicar infinitamente em perfeita autonomia.
Por um lado, depois de despoletado o processo, terei passado à mera condição contemplativa, incapaz de controlar o desenrolar dos acontecimentos. Por outro, poderíamos considerar que esse vídeo se encontra permanentemente no limbo entre ser e não ser, o que, ao contrário do que poderíamos imaginar, não representa nenhuma despossessão, mas antes a potência perfeita — aquela que apenas um nada separa da plena concretização (AGAMBEN, 1995); isto é, aquilo que essa sucessão de imagens propõe não é o abismo do nada, mas antes a abertura do possível, numa equivalência entre dois princípios aparentemente inconciliáveis: ser e não ser. E como veremos mais à frente, um ser que pode ser ao mesmo tempo que não é, ou seja, que mantém em aberto a possibilidade da escolha, cabe na categoria do contingente.

Na verdade, a ideia de arte está indelevelmente ligada a uma condição contingente que lhe atribui uma certa fragilidade e impermanência, mas que é capaz de lhe conferir também uma enorme capacidade de resistência. Pensar os limites dessa mesma resistência obriga a reconsiderar as modalidades de salvaguarda desse carácter que é condição absoluta da arte. Aliás, os mecanismos e instrumentos de controle do discurso que fazem parte do sistema das artes no seu todo trabalham essencialmente no sentido de uma catalogação da prática artística, construindo uma complexa teia de solicitações que conduzem frequentemente a uma anulação dessa mesma condição.
Na minha opinião, esse esforço para manter os mecanismos internos que salvaguardam a arte de si mesma, ou seja, que a ligam de um modo incontornável à condição de contingência absoluta, deverá passar pela recondução do projecto das vanguardas. Para isso será necessário, antes de mais, mapear o papel histórico das vanguardas e o seu lugar possível após todos os falhanços, o que poderá não caber com rigor num texto desta natureza. De qualquer modo, parece-me importante afirmar que terá de ser a partir das aporias da(s) vanguarda(s) (entendendo aqui aporia na verdadeira acepção filosófica do termo — como dificuldade insolúvel), mas já longe das mitificações modernistas que lhes conferiam um potencial transgressor e de ruptura, que poderemos encontrar alguns dos caminhos prováveis para repensar os territórios da arte.

    2.

Há uma história que é contada amiúde por Paul Virilio para situar uma possível origem do seu interesse pelas questões relativas à velocidade e suas relações com o exercício bélico. Em 1940, após a declaração de guerra à Alemanha, o jovem Virilio encontrava-se refugiado com a família em Nantes. Um dia, ouvem a rádio anunciar que os alemães tinham já entrado em Orlèans, a mais de 300 quilómetros dali. Pouco tempo depois sentem um estranho ruído na rua. Precipitam-se em direcção à porta: as forças motorizadas alemãs estendiam a sua acção ofensiva já em direcção à costa. Virilio afirma que foi a "surpresa absoluta", porque a realidade demonstrou a sua capacidade de iludir a informação (EWALD, 1995).
Este factor surpresa, esta sensação de se sentir ultrapassado pelos acontecimentos, é bem a imagem do efeito militar da vanguarda. Mas este relato também se revela asséptico e um pouco distanciado dos próprios horrores da guerra. No fundo, trata-se de uma visão romântica da vanguarda. Para termos uma dimensão diferente do problema será necessário recorrer a uma outra memória de Virilio, aquela em que ele relata o efeito aterrador que lhe provocaram os bombardeamentos de Nantes em 1942/43. E passo a citar: "À tarde, bombardeamento. No dia seguinte já não havia rua, tudo tinha sido arrasado, víamos o horizonte. Isso foi para mim um sentimento extraordinário: para uma criança uma cidade é eterna. De um só golpe ela havia tombado como um cenário" (ibid.).
Aqui encontramos uma imagem literal do efeito de tabula rasa que também podemos associar à vanguarda. Mas mesmo esta confissão da vivência terrível da guerra continua a revelar um sentimento distanciado e idealizado dessa experiência. É exactamente na confluência destas duas visões que se encontra o posicionamento que é reclamado pelas vanguardas estéticas na sua utilização do termo, primeiro como simples metáfora, como veremos, e depois como conceito já autonomizado.

Este pequeno relato pode servir para nos introduzir aos próprios mitos da vanguarda: à ideia de transgressão, de experimentação, de culto do novo, de oposição, de ruptura, e de crítica voraz ou mesmo superação do próprio meio que esta integra. Mas também à sua intenção declarada de pureza e aniquilação, de construção e ligação à praxis vital, num jogo paradoxal entre a ideia de passado e futuro, embora numa reclamação inequívoca de uma pertença ao mundo, aqui e agora. A origem militar do termo ajuda então a melhor circunscrever a natureza das vanguardas ditas históricas, mesmo sabendo-se que muitas vezes essa mesma origem provocou os seus anti-corpos. De qualquer modo, o feitiço desta ligação acabou por perseguir implacavelmente as vanguardas ao longo destes últimos dois séculos. E esse contexto metafórico, que apela para um movimento determinado e planeado em direcção a um objectivo específico, simultaneamente sujeito a um risco prévio (táctico e estratégico) e a uma liberdade imensa de movimentos, levado a cabo por uma elite consciente do seu papel, veio igualmente a constituir a base de alguns dos maiores equívocos e contradições das vanguardas.
Na procura de uma definição mais ou menos conforme com essa mitificação romântica das vanguardas é possível recorrer a Matei Calinescu, que no seu livro Five Faces of Modernity constrói um percurso possível da ideia de vanguarda, começando exactamente pelas suas óbvias implicações militares, que afirma permitirem de imediato uma primeira abordagem: "[...] um agudo sentido de militância, uma glorificação do não-conformismo, uma corajosa exploração percursora, e , num plano mais geral, uma confiança na vitória da imanência e do tempo sobre as tradições que tentam aparecer como eternas, imutáveis e transcendentalmente determinadas" (1987, p.95).
Essas transgressões, muitas vezes colocadas num plano puramente utópico, deram-se em diversos domínios, do político ao estético. De facto, não é possível pensar as vanguardas estéticas sem reflectir sobre as várias partilhas destas com as movimentações políticas mais radicais. Há com certeza fricções fortes entre as duas, principalmente porque as primeiras reclamam um potencial revolucionário independente, enquanto as últimas procuram muitas vezes instrumentalizar esse mesmo potencial, mas "ambas partem da mesma premissa: a vida deve ser radicalmente alterada" (ibid, p.104). Esta constatação parece central para a discussão do problema e a ela voltarei.

Se procurarmos na origem etimológica do termo as condições básicas para a existência de qualquer vanguarda (social, política, cultural) seremos de imediato confrontados com a ideia de que os seus representantes se encontram de algum modo convencidos do seu papel percursor, o que implica uma necessária consciência histórica e uma imersão num contexto desfasado desse movimento em direcção a um objectivo mais ou menos preciso, mas também a lembrança de que essa consciência implica quase obrigatoriamente uma crença no progresso da história (ibid., pp. 121-122). Além disso, existe uma intensa metáfora do movimento por oposição à inércia da tradição, onde encontramos um sinal de dois dos mais perenes mitos associados às vanguardas: a sua vontade revolucionária de lutar activamente contra um inimigo —a tradição —; e, também, o culto do novo.
Foi entre estes dois pólos, um profético e orientado para uma ideia de construção futura, o outro subversivo, recusando a tradição e o passado, propondo até uma visão puramente nihilista, que se construiu a mitificação dessas mesmas vanguardas.

O termo (vanguarda) tornou-se, pois, num instrumento fundamental para agrupar sobre uma mesma designação um conjunto de movimentações extremas que, unidas pela sua radicalidade, se incorporam no movimento mais vasto da modernidade ao mesmo tempo que acentuam características distintivas fundamentais. Não é possível pensar a modernidade sem convocar o próprio conceito de vanguarda como parte integrante do processo, mas é necessário não confundir esses dois conceitos que se atraiem e afastam: modernidade e vanguarda. Aliás, não se deve esquecer que a vanguarda enquanto tal — contendo exactamente essa consciência de uma acção baseada em vectores radicalmente diferentes e orientados em função de uma qualquer visão progressista da história — só pode ser considerada a partir do último quartel do século XIX, apenas se estruturando, do modo que aqui pretendo enquadrar, na segunda década deste século (ibid., pp. 117-119). momento de afirmação plena dessas vanguardas históricas no campo estético. É assim que, enquanto categoria histórica, as vanguardas tendem a fixar-se essencialmente nesse período mítico que corresponde às primeiras décadas do século XX, embora afirmando-se simultaneamente como uma categoria estética em constante reconstrução.

Com a instituição das vanguardas como um autêntico mito cultural no período após a Segunda Grande Guerra surgiu igualmente um enorme conjunto de contradições internas que se ligam essencialmente à dualidade tradição/anti-tradição. A natureza inconciliável da disciplina e da liberdade de movimentos, da luta contra a tradição a par com a construção de uma nova norma, veio então a resultar na dificuldade que as vanguardas tiveram em lidar com a institucionalização do seu papel histórico e com a sua aceitação — e dos seus mitos e aporias — como parte integrante da tradição. No fundo, essa institucionalização revela apenas que essa prática anti-tradição incorporava já em si mesma as convenções que viriam a determinar as vanguardas como uma espécie de um sub-sistema. Ou, dito de outro modo, como faz Poggioli, formular para as vanguardas o grupo de convenções que gerem a excepção, não a regra (1962, p.56). Mas é esta visão algo maniqueísta das vanguardas, a sua definição enquanto cultura da negação ou ainda como sinónimo de arte de excepção, que acaba por resultar no aparecimento de contradições insanáveis.

Apesar de também se revelar algo problemática, a identificação das vanguardas com uma cultura de crise parece mais adequada (CALINESCU, 1987). Desse modo, será possível pensar as vanguardas estéticas para lá das antinomias da transgressão e da negação, para as colocar na perspectiva de um processo que incorpora em si mesmo a ideia e a prática de uma crise cultural. Porque é exactamente a sugestão de que as vanguardas tendem para uma transgressão e negação dos códigos estruturais da cultura hegemónica que as coloca em xeque no pós-guerra. Com a sua institucionalização teriam deixado de existir limites para transgredir. A noção de exterior encontrar-se-ia assim perdida e a concepção romântica e mitificada das vanguardas que se procurou esboçar aqui pressupõe a existência de uma linha de demarcação clara entre interior e exterior, entre norma e desvio, o que vem deitar por terra os pressupostos fracturantes dessa movimentaçãoes. Aliás, as fronteiras que é possível desenhar entre norma e desvio nunca são assim tão claras.

É usual dizer-se que o período do pós-guerra (e em especial as décadas 60 e 70) marca decisivamente a recorrência do tema da morte da vanguarda. Este fenómeno terá sido acompanhado por um refluxo que coloca em igual patamar uma nova reclamação do papel das vanguardas, ou, para utilizar uma terminologia já aceite, das chamadas neovanguardas. Mas como é que se relaciona a ideia de recuperação ou renascimento das vanguardas — a que o prefixo alude — com essa obsessão reflexiva sobre a sua própria morte? Tratar-se-ia então de um fantasma, desprovido de corpo mas capaz de assombrar aquilo que reaparecia com as neo-vanguardas? Ou, pior ainda, um cadáver sem substância, uma farsa em decomposição?

Antes mesmo de tentarmos responder a estas perguntas, talvez possamos regressar à discussão de uma das questões primordiais para uma qualquer definição do campo de acção das vanguardas estéticas: a sua relação incontornável com as vanguardas sociais e políticas. A convocação de uma metáfora (que está na base da própria ideia de vanguarda) tão conotada com as movimentações políticas mais radicais e credoras de uma intenção de mudança total do funcionamento das sociedades não revela nenhum esforço retórico. Contribui, ao invés, para afirmar a inexistência de uma fronteira clara entre essas duas de mudança radical da vida e lembrar assim um dos mais intensos desejos, tantas vezes invocado, das vanguardas estéticas: a aproximação entre arte e vida, ou, de um modo mais radical, a superação dessa oposição.
Ao contrário do que afirmam alguns autores, não parece ser possível falar claramente de duas vanguardas -— uma estética e outra revolucionária e política por natureza — separadas por conflitos de objectivos e de interesses insanáveis. Já em 1849, no seio de uma Europa abalada por convulsões políticas, Wagner proclamava essa ligação umbilical que viria a ser reclamada pelas vanguardas históricas: revolucionar a arte seria o mesmo que revolucionar a vida. São as dúvidas levantadas sobre a validade deste projecto (reduzido que estaria a um esforço retórico, a um lugar-comum esvaziado de sentido) que colocam na ordem do dia nas décadas de 60 e 70 o tema da morte das vanguardas. Mas essas dúvidas também resultam, como vimos, da visão romântica da vanguarda que se procurou expôr aqui. A aceitação da identificação das vanguardas com uma ideologia do progresso, cultora de uma originalidade latente e devedora de uma lógica da trangressão e da ruptura, elitista e hermética nos processos, também contribuiu significativamente para o colocar em causa da validade da teoria e da prática das vanguardas.

    3.

Apoiado numa perspectiva histórica que reflecte os acontecimentos de Maio de 68 e que não deixa de corresponder em parte à falência das esperanças neles depositadas, Peter Bürger publica em 1974 a sua obra Teoria da Vanguarda, que viria a servir desde então como um dos eixos para esta discussão.
Nesse ensaio, Bürger procura identificar o processo de autonomização da arte, que se teria afastado da praxis vital em resultado da perda da sua função social. Esse processo, mais ou menos evolutivo, estaria idelevelmente ligado à própria teoria da arte-pela-arte e à procura de uma pureza do domínio estético. O percurso proposto parte da diferenciação entre arte e praxis vital presente já nas teorias do Iluminismo, muito em especial de Kant e Schiller, e leva-o a afirmar que já em fins do século XVIII a instituição arte está completamente formada (BÜRGER, 1974, p. 56). Apesar dessas formulações, só no final do século XIX, com o esteticismo, estarão reunidas as condições efectivas de separação entre a arte e a praxis vital, e é essa mesma situação que levará ao aparecimento dos movimentos das vanguardas históricas e ao seu ataque cerrado ao status da arte. Mas, Bürger lembra também que a categoria arte como instituição só se terá tornado "perceptível após esses mesmos movimentos terem criticado a autonomia do estatuto da arte na sociedade burguesa desenvolvida"(ibid., p. 19), parecendo assim procurar escapar à relação de causa e efeito que persegue a sua argumentação, estabelecendo um jogo circular de ocultação/revelação entre a origem e o resultado do problema.
De qualquer modo, é a visão mais determinista que acaba por prevalecer no livro. A vanguarda seria assim o ponto de chegada lógico deste estádio evolutivo, proporcionando à própria arte uma ferramenta de auto-crítica e transgressão da sua orgânica interna.
Apesar de se revelar problemática, a tese central de Teoria da vanguarda — a constatação da autonomização da arte e o papel transgressor único das vanguardas perante a separação entre arte e vida — poderá ser um instrumento útil para ultrapassar uma formulação da ideia de vanguarda que passe exclusivamente por essa mesma lógica de ruptura e transgressão, permitindo simultaneamente uma articulação teórica mais cuidada da dicotomia arte/vida.

Essa categoria da autonomia da arte possibilita uma releitura crítica das aporias da vanguarda: sob esse enfoque só uma arte erguida sobre a praxis vital seria capaz da proximidade necessária para um conhecimento crítico da realidade (ibid., p. 92). Com efeito, independentemente da parcialidade de alguns argumentos, demasiado enquistados numa visão maniqueísta que só propõe duas vias possíveis — a autonomia do objecto artístico ou a superação dessa categoria —, é possível rever na teoria e na prática das vanguardas exactamente uma tentativa de anulação da esfera separada da arte, que se teria instituído, distanciadamente e de modo especializado, numa espécie de duplo da realidade. Os movimentos da vanguarda histórica teriam então surgido, segundo Bürger, como uma resposta ao esteticismo, que pode ser definido através do retrocedimento do conteúdo, relegado para segundo plano pela forma (ibid., pp. 46-48), e à especialização crescente do trabalho artístico.
Mas, apesar de todos os desafios à esfera separada da arte levados a cabo pelas vanguardas do início do século, a campanha ter-se-ia revelado um fracasso — "Depois dos movimentos de vanguarda continuaram a produzir-se obras de arte: a instituição social da arte resistiu ao ataque da vanguarda"forma (ibid., p. 103). Perante este cenário as vanguardas estariam então em falência técnica: o efeito surpresa inerente à metáfora já não seria possível, e, pior ainda, o seu específico processo de institucionalização ter-lhes-ia retirado qualquer potencial transgressor.
Se Bürger reconhece nas vanguardas históricas um potencial revelador e transgressor da categoria de autonomia da arte, logo as relega para uma situação pós-histórica que ilumina o seu fracasso. É essa mesma situação pós-histórica que lhe permite negar a validade das neovanguardas, rementendo-as para o domínio da farsa. Em suma, segundo Bürger, a neo-vanguarda teria institucionalizado a vanguarda como arte e negado assim as genuínas tradições vanguardistas.

A ideia de uma origem e de uma repetição que atravessa essa tese de Bürger está presa em demasia ao mito da originalidade das vanguardas (que Rosalind Krauss tão bem problematiza em diversos textos), partindo do pressuposto de que existe um primeiro momento de verdade com as vanguardas históricas e um segundo momento — com as neovanguardas — de pura repetição acrítica dos lances das primeiras. Desde logo, é na violência de uma tal imposição teórica que parece residir parte da sua própria falência.
Sendo fundamental para esta argumentação a tentativa de uma defesa da reconstrução operativa das neovanguardas, tentarei agora uma argumentação capaz de anular o anátema lançado na Teoria da vanguarda sobre toda e qualquer reformulação do espaço crítico das vanguardas históricas. Não é que não existam outras propostas igualmente críticas, como são os casos de Adorno ou Habermas, por exemplo, mas a proposta de Bürger torna mais aliciante a desconstrução pelo facto de atribuir às vanguardas um efeito positivo para logo negar às neovanguardas esse mesmo estatuto, enquanto que a de Habermas revela uma enorme desconfiança relativamente ao projecto de recondução da arte à praxis vital e à necessidade de uma crítica ao seu desenvolvimento numa esfera separada

Perante esse contexto de crise indisfarçável, qual é ainda o lugar destinado às vanguardas? Com o potencial transgressor e fracturante abalado pela consciência histórica da sua assimilação (uma derrota tout court), às neovanguardas não restará outro caminho senão encontrar a sua relação umbilical com o presente sem recorrer aos mesmos voluntarismos utópicos das vanguardas históricas, ou, pelo menos, tentando actuar reflexivamente sobre elas. A situação das neovanguardas pode então ser descrita como um limbo definido entre a ideia de iluminação e a necessidade de reconstrução dessa herança histórica incontornável.

A proposta de Hal Foster, no seu livro The Return of the Real, que a partir das noções de paralaxe e acção diferida (1996), sugere uma revisão das teses de Peter Bürger, parece lançar sobre esta discussão da morte das vanguardas uma interessante reviravolta. As duas noções, que estruturam toda essa releitura, servem uma narrativa das relações entre vanguardas e neovanguardas distante de visões historicistas e propondo modelos diferentes de causalidade, temporalidade e narratividade (ibid., p. 28).
A noção de paralaxe diz respeito às diferenças de perspectiva quando um mesmo objecto é observado de dois pontos diferentes e é usada para sublinhar o quanto a nossa visão do passado depende das nossas actuais posições. A noção Freudiana de acção diferida, o facto de um acontecimento ser apenas plenamente registado através de um outro que despoleta esse mesmo reconhecimento e, ainda, a constatação de que apenas nos tornamos naquilo que somos por intermédio de um processo diferido, possibilita uma analogia com a relação entre as vanguardas históricas e as neovanguardas (ibid., ver introdução).
É com base nestes pressupostos que Hal Foster realiza a sua crítica da Teoria da vanguarda de Bürger. A pergunta "Who's afraid of the neo-avant-garde?" — que dá o título ao primeiro capítulo do seu livro — ecoa por todo o texto, permitindo afastar de vez a ideia de uma neovanguarda que se limita a actuar como um "pastiche histórico" mas que se afirma antes, através das referidas noções de paralaxe e acção diferida, como uma "prática reflexiva" capaz de transformar as limitações inerentes ao projecto das vanguardas históricas numa consciência crítica do mundo em geral e da arte em particular.
Mas Foster não se limita a rebater a tese relativa à ideia de uma origem (trágica) e de um reaparecimento (como farsa). Ao propôr que a ideia que hoje fazemos das vanguardas só pode ser construída retrospectivamente e que as neovanguardas tiveram aí um papel fundamental, acaba por questionar o centro da própria teoria de Bürger ao classificar como problemática a sua premissa relativa ao projecto único capaz de enquadrar a teoria e a prática das vanguardas: superar a falsa autonomia da arte. Mas, se o objectivo de uma arte de vanguarda seria para Bürger a recondução da arte à praxis vital, podemos igualmente perguntar onde é que se situam a arte e a vida e o que é realmente uma coisa e a outra, como faz Foster (p. 15).
Ora, esta construção a partir de dois pólos que se opõem é posta em causa devido à simplificação das relações possíveis entre eles, que acaba por se tornar evidente. Com esta questão, a oposição entre arte e vida é reduzida à própria dimensão mitificadora das vanguardas que, como vimos, pressupõem uma transgressão e uma ruptura.
A dicotomia arte/vida é assim transformada numa relação de tensão que recusa a ideia de uma prática transgressora pura e simples. No fundo, é uma forma diferente de propôr a substituição da cultura da transgressão pela cultura de crise de que falava Calinescu para tentar definir o território de acção das vanguardas.

Resumindo, a ideia romântica de vanguarda está indissociavelmente ligada a uma vontade transgressora e de ruptura capaz de uma recondução da arte à vida, através de uma superação da arte enquanto esfera separada. A crise de que o tema da morte das vanguardas é apenas um sintoma, não representa mais do que a contradição interna que estas encontraram ao serem obrigadas a assumir a sua cultura mitificada da transgressão a partir do próprio sistema que pretendiam criticar. Assim, pensar as vanguardas, ou neo-vanguardas a partir do pós-guerra segundo os mesmos pressupostos é uma simples impossibilidade técnica.
A atribuição de um valor positivo a essas reformulações da ideia de vanguarda passa necessariamente pela superação das pretensões românticas de ruptura e transgressão que muitas vezes lhe estão associadas, substituindo-as por um reposicionamento das vanguardas como cultura de crise; por outro lado, é necessário recusar a análise das vanguardas históricas através do prisma do mito da origem. Só pensando as neovanguardas desse modo, libertas da ideia de repetição acrítica de um passado heróico, é que se torna possível atribuir-lhes um papel preponderante na própria reformulação crítica do papel social da arte.
É certo que este debate se confunde, em parte, com as querelas entre modernismo e pós-modernismo, em especial se considerarmos que a modernidade termina quando deixa de ser possível pensar a história como um todo em progressão, como algo de unitário, o que corresponde ao fim das grandes narrativas de que falava Lyotard. De facto, também para essa oposição entre modernidade e pós-modernidade é possível falar da ausência de um real corte epistemológico, à semelhança do que acontece entre vanguardas e neovanguardas. Nessa oposição apenas se teria revelado um apropriação pelo sistema de práticas antes minoritárias, e que teriam perdido asssim o seu potencial subversivo.

De facto, muitos dos equívocos que aqui recensiei partem da origem militar das metáforas que acabaram por forjar desde sempre o carácter das vanguardas. A lógica da ruptura e da transgressão que procurei colocar em causa está demasiado presa a uma visão dicotómica e materialista da prática artística.
Talvez seja este o momento, depois deste longo preâmbulo mais ou menos árido de apresentar uma formulação possível para a ideia de sobrevivência já não apenas de uma prática de vanguarda, mas tomando a parte pelo todo, da própria arte.

    4.

Poderemos agora recuperar o pulsar orgânico e incontrolável que nasceu da total ausência de luz, para o ligar, de algum modo, a um certo conceito de bioestética forjado a partir da leitura que Giorgio Agamben faz do Bartleby de Herman Melville.
Bartleby, o escriba que não escrevia, é o exemplo último da experiência total da potência — que implica um equilíbrio perfeito entre a possibilidade de fazer ou de simplesmente não fazer. A resposta repetida por Bartleby até à exaustão ao longo do livro— preferia não o fazer —, não é em absoluto nem afirmativa nem negativa. Bartleby não aceita nem recusa aquilo que lhe é proposto, deixa-se ficar simplesmente numa zona de indecisibilidade entre as duas opções.
Na tradição filosófica ocidental esta zona é anulada pelos pólos da vontade e do dever, encaixada como está entre aquilo que queremos e aquilo que devemos. O que Bartleby apresenta é antes a manutenção da potência em estado puro — não aquilo que queremos ou devemos mas antes aquilo que podemos (ibid. p. 39). Ao colocar-se num espaço instersticial entre as duas hipóteses que lhe são oferecidas consegue manter--se, como refere Agamben, numa experiência de contingência absoluta (ibid. p. 60). Esta é também, na minha opinião, a distinta zona de impermanência da arte. A tensão provocada por uma obra advém exactamente da sua ausência de respostas, da sua contingência permanente. Mas também os particulares processos de fazer arte estão persistentemente encaixados nesse triângulo entre o dever, o poder e o querer.
Com isto não quero sequer aproximar-me de uma visão da arte baseada numa qualquer opacidade do objecto artístico, mas antes procurar definir para a arte um lugar — ou antes, um não-lugar — de indeterminação que lhe permita escapar à indexação e catalogação que permanentemente a perseguem.
Se às vanguardas só restará uma recondução do seu projecto para lá das velhas lógicas da ruptura e transgressão, à arte de um modo mais geral (porque para aquilo que estamos aqui a discutir as coisas acabam por realmente coincidir) não caberá outro destino senão escapar às dicotomias que constantemente lhe são propostas. Às boutades que resolvem todos os problemas na alternativa entre o sim e o não, a arte, quando no seu melhor, vem respondendo com uma fórmula que transcende as duas: talvez não (ou, então, talvez sim). Este princípio de contradição interna é uma das possibilidades da arte se defender de si própria.
E se a arte é ainda um interessante território para habitar, isso deve-se em grande parte à sua capacidade de iludir constantemente a rigidez cadavérica, tal como um organismo vivo faz da mobilidade e capacidade de adaptação um instrumento de sobrevivência. Da mesma forma que a vida, também a arte associa um determinado rigor conceptual a uma variabilidade elástica (SILVA, 1999) e essa é uma das suas virtudes: o modo como se torna prolongamento orgânico da própria vida (o que confirma a falácia das dicotomias vanguardistas arte vs. vida). Daí o conceito de bioestética que propus. Por isso também o recurso a esse orgânico mutante em formato vídeo, que apesar das suas diferenças mantém com os Orgânicos Mutantes da exposição uma forte relação de parentesco, podendo igualmente entender-se como uma aguda metáfora da implacável mobilidade que parece definir as novas (velhas) modalidades para habitar o lugar difuso da arte.

Gostaria de terminar recorrendo mais uma vez ao pensamento de T. E. Lawrence, que, ao escrever sobre a sua experiência de guerrilha no deserto, afirmava o carácter volátil do seu grupo de nomádas, na suposição de que eles "eram uma influência, uma ideia, uma coisa intangível, invulnerável, sem frente nem rectaguarda, pairando como um gás". Na recusa da ortodoxia, Lawrence defendia que era preciso estar sempre onde o inimigo não se encontrava, recusando-lhe constantemente a oferta de um alvo, numa total ignorância dos acidentes do terreno, das áreas estratégicas, das direcções ou dos pontos fixos. As máximas seriam a mobilidade e a ubiquidade (1922).
Não é esta a experiência da mobilidade absoluta, comparável à contingência e impermanência necessárias à sobrevivência da arte? As novas possibilidades e modalidades para habitar o lugar da arte estão pois inexoravelmente ligadas a esta condição de mobilidade, sob pena da sua própria resistência estar em causa.

É certo que esta proposta acaba também por configurar um problema irresolúvel – isto é, uma outra aporia —, na medida em que a passagem da sua formulação teórica para o domínio da prática artística é no mínimo sinuosa, especialmente se recordarmos como o chamado capitalismo tardio recuperou esses mesmos princípios de mobilidade para instaurar um regime difuso de dominação mercantil. Mas essa constante impermanência que resulta da ausência de soluções é a própria matéria da arte, o que apenas vem confirmar que a sua velocidade de escape reside exactamente na sua capacidade de manter firme a sua condição contingente.
É por isso que, apesar de toda esta argumentação, não gostaria de deixar de lembrar que não vejo este esboço de uma hipótese teórica para a (in)determinação do lugar da arte como um exercício axiomático, mas antes como um enunciado que se vai mantendo indefinidamente nessa condição, e que na aparente contradição da sua impotência de se afirmar como solução nos vai deixando um sorriso nos lábios. Até porque o humor é matéria essencial da arte, ou melhor, o humor que se volta sobre ela própria. A incapacidade de nos rirmos de nós próprios, o facto de nos levarmos demasiado a sério, conduz muito facilmente ao autoritarismo.
De facto, para aqueles que acreditam que a passagem da possibilidade ao acto é sempre resultado de uma decisão que põe fim à ambiguidade da potência é preciso recordar que essa é precisamente a eterna ilusão da moral, como Agamben também referenciou algures, e que a moral é por definição um território estranho à arte.


Bibliografia:

AGAMBEN, Giorgio:
1993 - "Bartleby ou la création", Saulxures, Circé, 1995.

BÜRGER, Peter:
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