Neuroaesthetics: um ciclo de conferências

Inês Rebelo *







b #14
Ago.05



Em Maio de 2005, durante os dias 20 e 21, realizou-se em Londres o ciclo de conferências Neuroaesthetics, organizado por Warren Neidich e Charlie Gere.

Tratou-se de um evento que pretendeu estabelecer um contexto alargado de debate acerca de diversas questões resultantes de práticas e discursos que operam e se desenvolvem na contaminação entre a esfera científica e o campo artístico. Esta contaminação está longe de ser pacífica ou unidireccional e estas conferências evidenciaram-no.

Apresenta-se, assim, uma possível leitura do conteúdo das intervenções seleccionadas, tendo em vista os principais eixos que tomaram forma durante o evento.

O programa completo deste ciclo de conferências esta disponivel em http://www.artbrain.org/program.html



Brian Massumi procurou pensar a relação entre os mecanismos políticos de exercício de poder e a profusão de dispositivos tecnológicos através do texto “Direito de morte e poder sobre a vida” de Michel Foucault (1976) e do recente caso de Terri Schiavo de forte impacto mediático.

De acordo com Michel Foucault, nas sociedades pós-modernas o poder não se revela como um exercício de soberania como outrora, quando se alicerçava no direito de decisão sobre a vida e sobre a morte e quando, por isso mesmo, adoptava a espada como símbolo primordial. Actualmente, os mecanismos de poder são de outra natureza. Progressivamente a partir do século XVII, o poder da morte e da espada, exercido no direito de tirar ou poupar a vida, foi sendo substituído por um bio-poder que se exerce como modo de administrar a vida e de a organizar. O exercício do poder, associado ao desenvolvimento do capitalismo, não parece manifestar-se através de um qualquer constrangimento ou impedimento das acções. Pelo contrário, exerce-se e manifesta-se na medida em que é capaz de gerar forças, de as fazer crescer e de as organizar.

Tal parece acontecer, para Brian Massumi, no recente caso de Terri Schiavo substancialmente amplificado pelos media. Terri Schiavo encontrava-se hospitalizada há alguns anos devido a sérios danos cerebrais que sofrera num acidente. O seu caso gerou grande debate acerca dos direitos que os pacientes nestas condições têm sobre a sua própria vida, quando não existem instruções ou registos sobre as suas intenções. George W. Bush chegou mesmo a referir o seu desejo de construir uma cultura de vida, onde todos os americanos são bem-vindos, valorizados e protegidos. Para Bush a essência da civilização é a de que os fortes têm o dever de proteger os fracos e, no caso em que há sérias dúvidas e questões, o benefício da dúvida deve ser dado em favor da vida[1].

Brian Massumi teceu uma teia complexa de relações entre o poder político e seus mecanismos de exercício, personificados em George W. Bush, e a definição Foucauldiana de bio-poder patentes no caso particular de Terri Schiavo.

Brian Massumi notou ainda que o aparato mediático (TV, jornais e Internet) funcionou como um importante veículo amplificador do ‘acontecimento’ Schiavo que, só assim, teve a capacidade de gerar o debate à escala política que gerou. O poder exercido em termos de bio-poder é, assim, hoje indissociável dos mecanismos tecnológicos mediáticos. Através dos media amplifica-se a singularidade de alguns eventos tal como sucedeu a 11 de Setembro de 2001 onde, até mesmo antes das torres do World Trade Centre caírem, já o acontecimento se tinha tornado num acontecimento global.



Durante a apresentação de Kodwo Eshun foi evidente o seu interesse no imaginário da ficção científica. Para si, o interesse neste género reside não tanto na capacidade de prever o futuro que, geralmente, lhe é atribuída mas sim, porque opera uma significativa distorção do presente, hiperbolizando-o. E é aí que este género se reveste de uma capacidade crítica acutilante.

Assim, não parecerá estranho que, para Kodwo Eshun, o livro Noir de K. W. Jeter (1999) funcione como um magnete tão poderoso como o texto “A morte do autor” de Roland Barthes (1968) para pensar as implicações do uso, através da Internet, de dispositivos da família Napster ou, até mesmo, para entender o papel de DJ. Os utilizadores do Napster actuam de um modo semelhante às práticas de sampling e apropriação recorrentes na actividade de Paul Miller (DJ Spooky), também ele presente neste ciclo de conferências.

Entre 1999 e 2001, cerca de 58 milhões de utilizadores do Napster partilharam gigabytes de informação áudio apropriando, hibridizando e recombinando esses fragmentos de cultura. Quais os impactos que teve a criação temporária desta espécie de “offshore” onde, livremente e sem qualquer custo, era possível obter e partilhar sons de arquivos musicais personalizados? Onde reside o significado, por entre colecções combinadas de interesses diversos numa cultura de conexões? 

No mundo negro de K. W. Jeter qualquer prática de violação de direitos de autor, de que o uso do Napster é exemplo, é considerada crime e é punida exemplarmente. A apropriação de criações de outros é intolerável para este autor. Por isso, a pena de morte não parece suficiente a K. W. Jeter, que prefere infligir ao violador uma pena violentíssima. Ao usurpador de património intelectual é extraído o sistema nervoso central para ser oferecido ao autor violado, após o seu implante num qualquer produto de consumo banal como, por exemplo, uma torradeira ou um telefone. Castigo extremo, portanto.

A visão de Jeter (ética?), manifestada na pena aplicada ao violador dos direitos do autor, nada tem a ver com a ideia pós-estruturalista de Roland Barthes de que um fragmento de cultura não pertence ao seu criador já que um texto (ou uma faixa áudio) é, em si mesmo, um tecido de citações apenas possível através de centenas de fontes de cultura anteriores. Para Barthes, através do esvaziamento do papel do autor até à sua omissão é possível, dialecticamente, o nascimento do leitor.



A apresentação que se seguiu a Kodwo Eshun ficou a cargo de Diedrich Diedrichsen. Este conferencista equacionou o uso de drogas e o aproveitamento cultural, à esquerda e à direita, desse estado alterado de consciência.

Nas pessoas de Walter Benjamin e Ernst Jünger, protagonistas de esquerda e de direita no panorama alemão, podemos salientar o entendimento e os usos díspares de experiências sob o efeito de drogas.

Nas descrições literárias de Walter Benjamin, como por exemplo em “Haxixe em Marselha” (1932), existe uma mistura de medo e fascínio quando se trata de explicitar a natureza deste seu encontro. Entre 1926 e 1934 Benjamin experimenta diversas drogas e interessa-se em estudar os efeitos físicos e a intensidade psicológica da experiência (sozinho ou acompanhado) e, por isso, experimenta em si mesmo usando o método de auto-observação.

Ernst Jünger, por seu lado, descreve as suas experiências com diversas drogas como conquistas do desconhecido que lhe permitem o acesso a níveis mais profundos de análise. Tal aparece em diversos livros seus, bem como em alguns apontamentos de Albert Hofmann, inventor do LSD, com quem Jünger se encontrava ocasionalmente. É, pois, o carácter heurístico da experiência como reveladora de uma verdade escondida por trás dos objectos que é importante, um pouco ao jeito da odisseia do Dr. Bowman à conquista do desconhecido, viajando ao encontro do monólito preto[2]

Importa referir que o uso de drogas também pode ser entendido numa relação de estreita proximidade face ao uso de dispositivos tecnológicos. No entanto, há uma significativa diferença de escala: as drogas afectam-nos ao nível molecular e microscópico enquanto os dispositivos tecnológicos actuam ao nível macroscópico. Como notou Steven Shaviro em “Remix / Remodel” (2003), haxixe, LSD, viagens em comboios de alta velocidade e imagens em ecrãs de televisão têm bastante em comum se os libertarmos da sua escala. 

De facto, como explicou a cientista Martina Wicklein na resposta à apresentação de Diedrich Diedrichsen, as interferências causadas pelas drogas nos neurotransmissores e receptores do sistema nervoso central afectam particularmente a percepção e a nossa interpretação do mundo que nos rodeia. Mas, como também ficou claro, é possível demonstrar que diferentes famílias de drogas despoletam alterações distintas ao nível do sistema nervoso.



Isabelle Moffat usou a sua intervenção para explorar o impacto que modelos científicos e teorias de percepção tiveram no desenvolvimento do projecto Fun House Exhibit no contexto da exposição This is Tomorrow em Londres em 1956.

Tratou-se de uma apresentação que vem na sequência do seu texto “A horror of abstract thought: postwar Britain and Hamilton’s 1951 Growth and Form exhibition” publicado na revista October (2000).

A exposição This is Tomorrow realizou-se na Whitechapel Gallery e contou com a participação de trinta e seis artistas e arquitectos divididos em doze grupos constituídos por um pintor, um escultor e um arquitecto. Cada grupo trabalhou em estreita colaboração no sentido de produzir um ambiente integrador de diferentes disciplinas.

Esta exposição, frequentemente associada ao nascimento da Pop Art, apresentou-se como um evento que enfatizava a ideia de colaboração e contaminação entre diferentes práticas como veículo perturbador de pesquisas e discursos teóricos que defendiam investigações especializadas e puras em volta de um só medium (Greenberg, 1965). 

Assim, o resultado deste evento aproximou-se mais de um ambiente caótico da vivência quotidiana da cidade do que de um universo purista. Contudo, como referiu Anne Massey (1995), um dos textos apresentados no catálogo aponta para uma ambivalência quanto ao programa da exposição. Ao contrário dos textos introdutórios de Lawrence Alloway e Reyner Banham, David Lewis defendia que era possível adaptar os dogmas do modernismo à realidade do pós-guerra.

A ambivalência na definição do programa da exposição é reveladora de divergências no seio dos participantes, do carácter híbrido do próprio evento e da resistência a ímpetos de ilustração de teorias ou a pensamentos abstractos.

É neste contexto que o grupo dois, constituído por Richard Hamilton, John McHale e pelo arquitecto John Voelcker, concebe o projecto Fun House Exhibit.

A Fun House Exhibit pretendia apelar, simultaneamente, a todos os sentidos perturbando a ênfase na percepção visual como sentido mais privilegiado na experiência estética. Assim, o espectador era confrontado com uma justaposição de imagens familiares provenientes da cultura de massas em paralelo com demonstrações rigorosas das ambiguidades da percepção.

Com base nestas preocupações, o ambiente da Fun House Exhibit foi dividido por Voelcker em duas partes rectangulares distintas que geravam ainda algumas zonas fechadas. As áreas rectangulares esquerda e direita correspondiam a dois campos temáticos distintos onde o recurso à representação é necessário: o campo das imagens e o campo da percepção propriamente dita. Nas zonas fechadas coexistiam aspectos dos dois campos temáticos.

No catálogo, apareciam a célebre colagem / poster de Richard Hamilton intitulada Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing? e uma reprodução do esquema The enigmas of perception and buried isomorphism: perceptual illusion. Os fragmentos da colagem foram retirados de revistas e correspondem a uma lista específica de categorias enquanto a reprodução do diagrama referencia directamente a teoria Gestaltiana de Wolfgang Köhler (1947), que procurou explicar a percepção de fenómenos com base na actividade do sistema nervoso central.

A relação entre modelos e estudos científicos e a concepção de um ambiente como o da Fun House Exhibit parece, no contexto destas conferências, perpassar alguns acontecimentos recentes. Refira-se, assim, a exposição Synaesthesia: A Neuroaesthetics Exhibition comissariada por Chloe Vaitsou em 2004 para o espaço ICA (Institute of Contemporary Arts) em Londres e a primeira residência de um cientista, Daniel Glaser, naquela instituição onde se inscreve a palavra arte.



Olafur Eliasson apresentou, na sua intervenção, alguns dos projectos que desenvolveu e falou do trabalho recente que está a realizar em colaboração com cientistas da Universidade de Leeds.

Actualmente, este artista interessa-se pelas experiências científicas de selecção e calibração de cores que são desenvolvidas no Departamento de Psicofisiologia dessa instituição.  

A experiência específica sobre a qual se tem debruçado é efectuada através de duas escalas de cor (tipo Pantone) afastadas entre si e existentes em cada uma das extremidades de um dispositivo de selecção. Numa das escalas é colocada uma cor e é pedido a um grupo de pessoas que seleccione, na escala oposta, a cor que lhe é equivalente. Acontece que nesta experiência as cores seleccionadas por diferentes pessoas não são as mesmas. Há, por isso, uma discrepância na selecção das cores que ocorre no momento de decisão a que cada pessoa é submetida.

Como referiu Olafur Eliasson, o aspecto científico desta experiência particular não lhe interessa tanto como o facto de que através desta pesquisa laboratorial revela-se a dimensão individual e subjectiva que existe na relação estabelecida com o mundo exterior dos fenómenos.  

Os fenómenos que nos rodeiam não são estáticos e a cor não é uma propriedade objectiva. Há, de acordo com o seu ponto de vista, uma dimensão mais negociável neste processo de apreensão que, geralmente, não é tomada em conta. 

Como notou Susan May (2003), o interesse deste artista pelo fenómeno cor lido pelos olhos de um observador participante apareceu em diversas instalações das quais são exemplo Room for one colour (1998), Your orange afterimage exposed (2000), Your blue afterimage exposed (2000) e 360º room for one colour (2002).

Através dos projectos que concebe, em particular naqueles em que o fenómeno cor esteve e está agora no centro das suas pesquisas, nota-se um movimento peculiar.

A relação entre as experimentações científicas no domínio da cor e a experiência que cada uma das instalações de Olafur Eliasson propõe ao espectador ecoa uma outra relação, que Bruno Latour (1993 e 2003) entende existir, actualmente, entre o domínio experimental circunscrito ao espaço do laboratório e o mundo exterior. Para este autor, estes dois campos parecem hoje confundir-se e os seus limites diluem-se. O que se passa no laboratório aproxima-se do que do que acontece na esfera social e política. Veja-se, por exemplo, o impacto dos dispositivos GPS (Global Positioning System) que permitem obter localizações rigorosas dentro e fora do espaço circunscrito do laboratório. Ou ainda, a esquizofrenia certamente experienciada pelos soldados que, no Iraque, viram muitas decisões tomadas no solo do campo de batalha e no interior de salas repletas de dispositivos digitais de simulação e rastreio.

Ainda que as instalações de Olafur Eliasson não actuem em nenhum solo de batalha, o movimento de transposição das experiências laboratoriais (recentemente no campo da psicofisiologia) para o espaço da experiência do espectador ecoa o mesmo processo híbrido de diluição e questionamento das fronteiras enunciado por Bruno Latour.

Num dos capítulos de uma monografia publicada sobre Olafur Eliasson temos acesso a diversos elementos que  elegeu como suas referências predilectas. Aí, a publicação Creative Evolution de Bergson (1907) ocupou um lugar especial. E, curiosamente, esta referência foi também escolhida numa outra ocasião directamente relacionada com o evento analisado.

Refiro-me a um outro ciclo de conferências, também intitulado Creative Evolution, que funcionou como outro módulo de discussão de ideias. Esta série de debates decorreu igualmente em Londres apenas com três meses de antecedência face a Neuroaesthetics. Assim, através desta relação casual, parece objectivar-se o carácter dinâmico e a persistência nos conteúdos debatidos que se pode sentir durante os dois dias de Maio. Neuroaesthetics não foi, de facto, um evento estático ou isolado.

 

Junho 2005

 

 

 

 

Bibliografia:

BARTHES, Roland, “A morte do autor” in O rumor da Lingua, São Paulo, Editora Brasiliense, 1988, pp. 69-70.

BENJAMIN, Walter, “Haxixe em Marselha” in Obras Escolhidas volume 2: Rua de Mão Única, São Paulo, Editora Brasiliense, 1987, pp. 248-253. 

FOUCAULT, Michel, “Direito de morte e poder sobre a vida” in História da Sexualidade volume 1: A vontade de saber, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 1994, pp. 135-161.

GREENBERG, Clement, “Modernist Painting” in “Art and Literature”, nº 4, Lausanne, S.E.L.A., Primavera 1965, pp. 193-201.

JETER, K. W., Noir, Londres, Orion Millenium, 1999. 

KÖHLER, Wolfgang, Gestalt Psychology, Nova Iorque, Liveright, 1947.

LATOUR, Bruno, “Atmosphère, atmosphere” in MAY, Susan (ed.) Olafur Eliasson: The weather project, Londres, Tate Modern Publishing, 2003, pp. 29-41.

LATOUR, Bruno, “Scientific representation and political representation” in We Have Never Been Modern, Londres, Harvester Weatsheaf, 1993, pp. 27-29.

MASSEY, Anne, The Independent Group: Modernism and mass cullture in Britain, 1945-59, Manchester, Manchester University Press, 1995, pp. 95-108.

MAY, Susan, “Meteorologica”, in MAY, Susan (ed.) Olafur Eliasson: The weather project, Londres, Tate Modern Publishing, 2003, pp.15-28.

MOFFAT, Isabelle, “A horror of abstract thought: postwar Britain and Hamilton’s 1951 Growth and Form exhibition” in “October”, nº 94, Cambridge, MIT Press, Outono de 2000, pp. 89-112.

SHAVIRO, Steven, “Remix/Remoldel” in Connected or What it Means to Live in the Network Society, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2003, pp. 185-186. 

 

Filmografia:

KUBRICK, Stanley 1968: 2001: Uma Odisseia no Espaço

Internet:

http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/americas/4398131.stm, consultado a 27 de Maio de 2005.

 


Notas:
[1] Fragmentos do discurso de George W. Bush podem ser consultados através do site da BBC em http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/americas/4398131.stm.

[2] A odisseia referenciada aparece no filme de Stanley Kubrick 2001: Uma odisseia no espaço (1968).




*Inês Rebelo nasceu em Lisboa em 1981. Vive e trabalha em Londres.
Estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e frequenta a Pós-graduação em Artes Plásticas no Goldsmiths College, University of London.
Participou em diversas exposições colectivas desde 2001, das quais se destacam «Antecip’Arte» (Estufa Fria, Lisboa, 2004), «Preview» (Espaço Iduna, Lisboa e Matosinhos, 2004) e «The opposite direction/Easily reversible» (ZDB, Lisboa, 2002).  

 

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