Tópicos nómadas em torno do conceito de curadoria

Ana Guimarães *







b #14
Ago.05





Harald Szeemann na Documenta
de Kassel, em
1972.

1.

Durante a primeira metade do século passado, grande parte das exposições de artes plásticas hospedavam-se no critério dos directores de museus ou dos produtores/técnicos de exposições.

No entanto, desde os anos 20 que o interesse conferido à execução de exposições assume cada vez mais importância; designers, arquitectos e artistas como Herbert Bayer, Frederick Kiesler, Lilly Reich e El Lissitzky definem o design de exposições como parte integrante do seu trabalho, são profissionais de exposições. Segundo Mary Anne Staniszewski, «The exhibitions designs of international avant-gardes of the first half of the century can be seen as the prehistory of one of the dominant practices of contemporary visual culture: installation art». [1]

Na década de 60, autores como Seth Siegelaub e Harald Szeemann alteram a lógica de intervenção do director de museu ou do galerista. Há um forte cunho de autoria, elaboram exposições como agentes criativos, mesmo que a sua formação não esteja directamente ligada a nenhuma das áreas tradicionalmente pressupostas para tal. Bruce Altshuler sugere que «the changes in avant-garde art which took place at this time also spawned an important development in the world of advanced exhibitions, the rise of the curator as creator»[2]. Estes autores/curadores independentes vão alterar o conceito de exposição.


2.

Trabalhos como The January Show (1969) ou Xerox Book (1968) de Siegelaub no curso de uma curadoria independente, bem como com When Attitudes Become Form (1969) ou a Documenta 5 de Kassel (1972) de Szeemann convergem para o reforço da actividade do curador enquanto autor. Para Szeemann, «a apresentação converteu-se em parte da obra»[3]. A Documenta 5 serviu, por exemplo, para «fazer explodir a exposição, fosse através da arte dos alienados, fosse através da afirmação de que a intensidade é mais importante do que mostrar artistas de forma uniforme»[4]. E, continuando a citar: «É preciso sentir uma exposição num determinado momento, não ilustrá-la simplesmente, mas antes dar-lhe uma forma mais ambiental» [5].


Nos anos 80, na sequência do florescimento do mercado e do comércio da arte, do incremento das exposições temporárias e dos museus de arte contemporânea, a actividade do curador expande-se; exposições como Chambres d’Amis (1986), organizada por Jan Hoet, à altura director do Ghent Museum van Hedendaagse Kunst, assim como as sucessivas exposições organizadas por ele e por Bart Baere – Rendez (-) Vous (1993), e This is the Show and the Show is Many Things (1994) –, assinalam o território do curador no fenómeno da arte contemporânea.

No decurso dos anos 90 iniciam-se os estudos de curadoria. A superstrutura reconhece o papel do curador, definindo-o claramente como profissão, como força estabelecida: ou seja, institucionaliza-se: «These are the years during which “curating” became a verb and the phrase “curated by” became common currency in the world of contemporary art».[6]

Dessa década, destacamos nomes como Denys Zacharopoulos, com exposições como De la main à la tête, l’objet théorique (1993); ou Udo Kittelmann (director do Kölnischer Kunstverein) com Der Stand der Dinge (1994); Jeremy Millar com The Institut of Cultural Anxiety (1995); e Hans Ulrich Obrist com Take Me (I’m Yours) (1995), exemplos que convergem para a crescente visibilidade e intensidade do papel do curador.

Estaremos, assim, perante o incremento de uma profissão multidisciplinar, ecléctica (misturando tendências opostas sem originar conflitos), interactiva[7], hedonista e egóica – referentes recorrentes da pós-modernidade.

Recortando-se na lógica pós-moderna, o curador agrupa uma série de funções que estavam disseminadas: rizomático[8], ele «é uma espécie de regente de orquestra. O elemento que acaba por aglutinar as energias individuais, que devem resultar, no fim, numa energia única»[9], acumulando ainda uma «função de mediação entre várias instâncias: o artista e a sua obra, as instituições e o público»[10]. Logo, o curador, quase à semelhança do produtor cinematográfico, tem também a seu cargo definir o catálogo, seleccionar os artistas, mediatizá-los e, inclusivamente, promovê-los, ainda que Szeemann lave daí as mãos e afirme que «uma vez terminado o trabalho, o artista pode tirar partido do que faz, eu não sou o seu dealer e já terminei a minha tarefa»[11].

Laborando no circuito da pós-modernidade o papel do curador é representativo da (des)fragmentação de referentes e da condensação de tempo(s) e espaço(s): pois é um artista(?), um produtor(?), um autor(?), um historiador de arte(?), um crítico de arte(?)... Abandonando toda a dinâmica de universalização e de unificação, característica da modernidade, dois adjectivos parecem girar doravante em torno do curador – esteta e hedonista.

O espectro do dândi de Baudelaire assombra, assim, o perfil do curador, ele é aquele que, mediante engenhos vários, capta o espírito do tempo e que, quase como uma febre, manifesta a «necessidade ardente de criar uma originalidade dentro dos limites exteriores das conveniências»[12].



Chambres d'Amis, Gent, Bégica, 1986 [vistas de algumas das intervenções: Sol Lewitt, Hidetoshi Nagasawa, Wolfgang Robbe, Remo Salvadori/Ettore Spalletti (fotos de Giorgio Colombo)].


3.

Nos anos 80/90, assistimos ao surgimento de um poderoso sistema económico encarregado da gestão das práticas culturais e artísticas. As instituições e as indústrias culturais conhecem então um desenvolvimento sem precedentes. O moderno sistema cultural, regido pelo princípio da rentabilidade e do marketing, distribui a máxima quantidade de bens culturais pelo maior número possível de pessoas.

Depois da instituição museológica ter sido posta em causa nos anos 60 e 70, assiste-se nas duas décadas seguintes à sua maior versatilidade e consumismo: «reestruturada según la lógica de la seduction y de lo efímero»[13], pois tende a converter-se num instrumento adequado ao novo «tribalismo cultural»[14] ou se quisermos o museu passa de museu escaparate para museu espectáculo[15].

Assim, e dentro do espírito da época, o museu abandona os cânones da museologia dos inícios da idade contemporânea, isto é, a fórmula patrimonial e enciclopédica, e deixa-se seduzir pelo espectáculo, pelas multidões sobretudo presente nos museus de arte contemporânea e de ciência e tecnologias, que têm nestas décadas o seu momento áureo.

O Centro Cultural de Belém [em Portugal] (construído entre 1988 e 1993) reflectirá, igualmente, uma concepção ideológica da substituição do museu por uma indústria museológica, «na qual a colecção é vista como mercadoria e a “acessibilidade” parece reinar num oportunismo crescente. Esta apetência pela “acessibilidade” pode forçar as instituições públicas a fazerem concessões a um tipo de programação que corresponde às exigências políticas de uma maior afluência de público. Daí decorre a apresentação de um «espectáculo» que apele ao instinto “consumidor” do visitante em detrimento de projectos que provoquem um maior desafio (…)». [16]

É neste contexto que a cultura e a arte aparecem cada vez mais claramente como elementos do processo de reprodução[17] alargada do capital, numa situação de dependência objectiva face ao mercado.

Por sua vez, alterações na divisão social do trabalho cultural conduzem ao esbatimento da figura (da aura?) do criador singular e à valorização dos mediadores que intervêm tanto no lançamento e distribuição dos produtos culturais, como até na sua própria concepção.



4.

Introduzir num motor de busca da Internet a palavra «curador» revela que a institucionalização do curador é uma evidência, tal é a profusão de currículos, propostas de cursos e prognósticos de empregabilidade.

No entanto, como se rege o curador independente no seio das exigências tardo-capitalistas?

Detectamos alguns caminhos possíveis:

COMO ARTISTA: «So I use the museum as my palette»[18], ou seja, assumindo-se como artista. A partir de uma ideia de exposição, promove-a, acabando por ser esta que ganha relevo face aos próprios artistas e, por conseguinte, a exposição autonomiza-se, ganha unidade e leis próprias: o discurso reflexivo, a concepção de uma ideia, compete com a criação de um objecto.
Estaremos, então, perante o curador hedonista, o cabeça de cartaz que valida a exposição e a instituição.

COMO AQUELE QUE RE-LIGA – A erosão das vanguardas, a heterodoxia da produção plástica dos jovens artistas emergentes, desalinhados com correntes artísticas ou catalogações, convocam o curador para a função de re-ligar os fragmentos dispersos e antagónicos da produção artística contemporânea. Aproximando-se dos domínios do sagrado, através do ritual da exposição o curador ordena o caos e forma uma totalidade.
Este é, seguramente, um terreno movediço para os curadores contemporâneos, mas que lhes permitirá inflacionar o seu poder material e simbólico.

COMO PROMETEU – O curador assume uma posição discreta, fazendo valer a exposição por si[19] e correndo o risco de ocultação e, dessa forma, perder poder (a própria sobrevivência do curador não passará por essa relação de poder, de poder face aos artistas, de poder face às instituições?) e poder está aqui também relacionado com a liberdade individual: quanto maior for o poder, maior autonomia para o exercício curatorial.
A invisibilidade do curador poderá pressupor, então, uma perda de poder (mediático, sobretudo, o que não será de somenos importância se a colocarmos face à lógica totalitária da sociedade do espectáculo), o que o aproxima assim da figura de Prometeu: aquele que revela o fogo aos mortais acaba por sofrer o desterro imposto pelos deuses.

COMO UM HONESTO ASSALARIADO – O curador como assalariado de uma instituição à qual terá que agradar e para a qual elabora exposições por medida[20], dentro de uma lógica empresarial tardo-capitalista em que a quantificação de público e a vassalagem ao espectáculo são os barómetros de avaliação crítica.


5.

Com um percurso recente, a curadoria é um conceito nómada e polissémico. Institucionalizada e com direito a organigrama, a sua definição não é fixa, flui com a espuma dos dias e varia de sentido consoante o autor.

Depois de alguns flashes sobre o(s) trajecto(s) percorrido(s) pelo curador, distinguimos, de forma pessoal (sendo, por conseguinte, discutíveis) alguns perfis: o curador como artista, submetendo a obra de arte – instrumentalizando-a, portanto – à preponderância da intensidade e ambiente da exposição; o curador como o «enviado» que vem ordenar e re-ligar a fragmentação na produção da arte contemporânea; o curador como editor, invisível, que promove projectos de maior desafio, «colocando a imaginação do observador frente à imaginação do artista»[21]; ou o curador como assalariado, vivendo a liberdade condicional imposta por uma instituição (museus, fundações, etc.).

Sabemos que os percursos da curadoria contemporânea não se esgotam nesta listagem e que, não raras vezes, os diferentes patamares se cruzam e auto-alimentam. Arriscamos também dizer que o efeito do curador no fenómeno da entidade «arte» não será ainda mensurável: qualquer avaliação terá sempre um carácter precário face à própria natureza da entidade «curador».

 



BIBLIOGRAFIA

Baudelaire, Charles, O Pintor da Vida Moderna, Vega, Lisboa, 1993.

Bock, Jürgen, «Da Obra ao Texto – Uma Introdução», in Da Obra ao Texto Diálogos sobre a Prática e a Crítica na Arte Contemporânea, Centro Cultural de Belém, Lisboa, 2001.

Bourdieu, Pierre; Darbel, Alain, L’amour de l’art, les musées d’art européens et leur public, Les Editions de Minuit, Paris, 1969.

Deleuze, G.; Guattari, F., Mille plateaux, Capitalisme et Schizophrénie, Paris, Ed. de  Minuit, coll. «Critique»,1980.

Farquharson, Alex, «I Curate, You Curate, We Curate…», in Art Monthly, Setembro de 2003.

Fernandes, João, in “Público” 27/10/2001.

Fernández, Luis Alonso, Museología y Museografía, Ediciones del Serbal, Barcelona, 2001.

Gleadowe, Teresa, «Artist and Curator – Some Questions about Contemporary Curatorial Practice», in Visual Arts and Culture, Australian Humanities Research Foundation, Sydney, 2000.

Karp, Ivan; Wilson, Fred, «Construction the Spectacle of Culture in Museums», in Thinking about Exhibitions, Routledge, Londres e Nova Iorque, 2003.

Perez, Miguel, in “Público” 27/10/2001.

Staniszewski, Mary Anne, The power of Display - A History of Exhibition Installations at the Museum of Modern Art, MA: MIT Press, Cambridge, 1998.

Szeemann, Harald, «Entrevista com Harald Szeeman», in W Art, nº 3, Abril de 2004.

 

 



Notas:

[1] Staniszewski, Mary Anne, The Power of Display - A History of Exhibition Installations at the Museum of Modern Art, p.4.

[2] Gleadowe, Teresa, «Artist and Curator - Some Questions About Contemporary Curatorial Practice», in Visual Arts and Culture, p. 103.

[3] Szeemann, Harald, «Entrevista com Harald Szeemann», in W Art,nº 3, 2004, p. 96.

[4] Idem, p. 97.

[5] Não deixa de ser assinalável que, neste caso, o papel do curador – descentrando e subordinando a obra à intensidade e ambiente da exposição – actue, também, como fenómeno de supressão da aura da obra (devolvendo-a, no entanto, a posteriori: por via da autoridade/unção curatorial).

[6] Gleadowe, Teresa, «Artist and Curator - Some Questions About Contemporary Curatorial Practice», in Visual Arts and Culture, p. 111.

[7] Parece-nos importante sublinhar que interactividade implica, em primeiro lugar, a reversibilidade das posições relativas de um «autor» e de um «utilizador», a reconsideração da hierarquia de competências e a consequente problematização de valores institucionais fortemente enraizados na nossa cultura, como o direito autoral e a propriedade da informação.

[8] «(…) the new curators aspire to create the conditions for Deleuze and Guattari’s now classic notion “Rhizome”, whose intermeshed, multi-directional patterns of growth contrast with the unitary, dialectic and hierarchical tree-like structure of the Western Archive», Farquharson, Alex, «I Curate, You Curate, We Curate…», in Art Monthly, Setembro 2003, p. 10.

[9] Perez, Miguel, in Público 27/10/01, p. 21.

[10] Fernandes, João, in Público 27/10/01, p. 21.

[11] Szeemann, Harald, «Entrevista com Harald Szeemann», in W Art, nº 3, 2004, p.98.

[12] Baudelaire, Charles, O Pintor da Vida Moderna, p.47.

[13] Idem, p. 84.

[14] Idem, p. 85.

[15] Cf. Fernandéz, Luís Alonso, Museologia y Museografia, p. 87.

[16] Bock, Jürgen, Da obra ao texto – Uma introdução, p.14.

[17] Cf.Bourdieu, Pierre; Darbel, Alain, L’amour de l’art, les musées d’art européens et leur public.

[18] Karp, Ivan; Wilson, Fred, «Construction the Spectacle of Culture in Museums», in Thinking about Exhibitions, p. 253.

[19] Como afirma João Fernandes, «o trabalho de comissário é tanto melhor quanto mais invisível», in Público, 27/10/01, p.21.

[20] «As exposições blockbuster, que muitos museus têm organizado, passaram a relacionar-se com uma entidade abstracta, o público, tentando actuar como máquinas de publicidade e descobrir o que esse público deseja», Bonami, Francesco, Curador da Bienal de Veneza de 2003.

[21] Idem.

 * Nasceu e vive em Guimarães. Pós-Graduada em Direcção Artística pela ESAP-Extensão de Guimarães.
e-mail: ana_guimaraes_@hotmail.com

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