REALIDADES E MITOS DA MEDIA ART

Claudia Giannetti







b #08
Dez.03





A partir de meados do século XX, e em alguns casos inclusive antes, começam a surgir, originadas de diferentes campos do conhecimento, novas teorias que têm em comum o cepticismo em relação as ideias que marcaram tão profundamente as ciências e a cultura ocidentais. As questões sobre a verdade e a realidade, a razão e o conhecimento se mantém como centro da atenção no debate entre o racionalismo e o relativismo.
No campo da arte, este relativismo se manifesta de diferentes maneiras: tanto na crescente tendência a estabelecer nexos, relações ou reciprocidades entre os diferentes campos artísticos – evidente nas criações “intermedia” ou “mixed media”, intervencionistas, interdisciplinares, etc. - como na “potenciação” dos vínculos entre arte, ciência e tecnologia. A prática artística relacionada com os novos meios digitais, telemáticos ou robóticos acaba por impor o abandono de diversos paradigmas que tem marcado a cultura humanista.
A partir da reflexão artística, os esforços de diferentes pensadores pós-modernos vão dirigidos justamente contra o reducionismo que tem circunscrito a concepção estética ao objecto de arte.
Se trata, por um lado, de recuperar o amplo significado original de “aisthesis”, que compreende as percepções, as sensações, os sentimentos ou os conhecimentos e, por outro, de incluir outras formas de percepção: a da vida, a do entorno, a das máquinas, etc.
A Media Art é sem dúvida um bom exemplo da colocação em prática desta ampla interconexão entre as disciplinas em favor do significado amplo de “aisthesis”. É cada vez mais destacada a aproximação entre arte, ciência e tecnologia, apreciável em diversas produções audiovisuais, instalações interactivas, criações telemáticas e outras manifestações da arte electrónica. A peculiar relação entre as pessoas e os sistemas computadorizados, ou a questão da interface ser humano-máquina, são temas particularmente relevantes para a compreensão dos delineamentos “tecnoartísticos” actuais. O diálogo entre obra e espectador se estabelece não só sobre a base da linguagem ou a reflexão, mas principalmente de uma maneira prática, no sentido recursivo da comunicação, na medida em que exorta a própria acção do observador no contexto da obra.
Entre as reflexões que estão surgindo sobre a relação entre a arte e a tecnologia digital, cabe destacar dois temas específicos tanto pela sua relevância em relação com arte electrónica, como por sua implicação filosófica, sociológica e cultural.
A estes temas gostaria de dedicar a parte central deste texto, a saber: a questão da interactividade ou a interface ser humano-máquina; e as mudanças de paradigmas estéticos que implicam na progressiva emancipação criativa das máquinas.
Diante de tudo tem-se que ser consciente de que a perspectiva puramente técnica é insuficiente para explicar a forma como a tecnologia cria uma rede no tecido da cultura, já que os processos culturais são construções de múltiplos níveis e a visão tecnicista não esclarece como os próprios usuários concebem suas relações pessoais com a tecnologia. Se fizéssemos uma “arqueologia” da noção de feedback, por exemplo, constataríamos que o actual “culto à interactividade” – que chega a ser, em alguns casos, também um culto à possível “inteligência” da máquina (artificial, naturalmente) – provém dos mitos e admirações desenvolvidos ao longo da segunda metade do nosso século em torno das “máquinas informáticas” e dos autómatos.

Para analisar o começo da arte interactiva é necessário falar primeiro de arte participativa. Se costuma ter uma visão equivocada de que é com o aparecimento da tecnologia digital que começa o desenvolvimento das ideias da participação do público na obra. Este é o primeiro mito promovido pelo discurso tecnicista.
Podemos situar o desenvolvimento das noções de participação no contexto da arte em princípios do nosso século. Quer dizer, é com a primeira vanguarda, especialmente com as acções dadaístas, quando surgem as primeiras propostas claras de integrar o espectador como participante na obra de arte.
Encontramos que a partir dos anos cinquenta se desenvolvem diferentes movimentos artísticos que demonstram uma sensibilização por parte dos criadores em relação a situação inerte tanto da obra de arte como do espectador. Um bom exemplo é a primeira Arte Cibernética, dos anos 50 e 60, que utilizou sistemas de respostas provocadas por efeitos diversos (como som, luz, sombra, caminhar por um espaço). A Arte Cibernética criou estruturas que provocavam uma reacção utilizando sistemas de feedback, células fotoeléctricas, aparatos electromecânicos, microfones, etc. A partir dos anos sessenta, os artistas que trabalhavam nos campos da arte participativa, dos happenings ou da arte da acção questionavam de forma mais directa a posição passiva do espectador frente a obra de arte e formulavam propostas no sentido de motivar a participação do público.
Aqui encontramos alguns dos principais antecedentes do que chamamos hoje em dia “arte interactiva”. Quando falamos de interacção, de participação por parte do público, tocamos necessariamente num tema básico, que é a nova estrutura da obra de arte. Uma obra aberta, que pretende a integração do espectador, tem que ter necessariamente uma estrutura aberta, que permita este acesso. Isso significa uma ruptura com o sistema tradicional sequencial, uma ruptura com a estrutura claramente definida e acabada da obra de arte tradicional. A arte interactiva subverte o sistema “objectual’, definido e concluído pelo artista, um sistema predominante na nossa cultura ocidental e nas manifestações artísticas “tradicionais”.
O sentido da obra de arte na sua concepção conceitual tradicional sofre, assim, um profundo “giro” conceitual, posto que desaparece o significado da manufactura de produção artística no processo de criação da obra. E aqui reside uma questão central: a obra de arte interactiva significa um passo a partir da teoria estética clássica, centrada no objecto de arte, gerando uma nova teoria que tem como ponto de referência principal o observador, o público, o usuário. O conceito de participação adquire outra dimensão no sentido da interacção em diversos níveis: entre sujeito e “aparato”, e entre aparato e aparato.
Se nos centrarmos no campo estético, nos damos conta de que este discurso intrínseco aos novos meios tecnológicos se espelha na produção artística que os utiliza. Frente as ideias de simulação, imaterialidade, artificialidade, temporalidade e virtualidade da maioria das obras de arte electrónica, já não tem mais sentido os antigos conceitos de originalidade, de génio criador, de autonomia da obra de arte, de representação da realidade, conceitos que encontramos nas teorias estéticas partindo de Kant, passando por Hegel, até Heidegger, ou inclusive na própria teoria artística de Walter Benjamin, que não deixa de ser, a sua maneira, um pensamento nostálgico e restaurador (ainda que muitos teóricos actuais pretendam vinculá-lo, por sua teoria da reprodutibilidade técnica, com a Media Art).
Estas ideias são só algumas das características básicas da arte digital, que invalidam os conceitos citados da estética de fundamento antológico, na qual prevalece a presença do objecto e sua condição estática e estável ou a classificação das artes. A separação entre as artes perde todo sentido tendo em vista a interdisciplinaridade e o conceito de obra de arte total que cada vez mais se consolida na estética digital.
O processo predomina sobre a obra; portanto, o objecto desaparece no processo electrónico. O que significa uma relação absolutamente temporal, dinâmica e mutante por sobre a ideia de espaço e forma permanentes e as estéticas do objecto de arte da teoria clássica.
Analisemos agora um outro aspecto da interactividade hoje. As vantagens dos sistemas digitais são inegáveis, mas não se pode esquecer que o possível valor estético de uma obra produzida a partir de meios electrónicos não se limita à efectividade da definição não-linear de navegação, ou ao fato da obra permitir ou não um feedback ou a participação do usuário, que muitas vezes não conduz a nenhuma incrementação conceitual ou criativa substancial à obra. Dito de outro modo, se o público participa ou não na obra, não é um factor qualitativo essencial, senão, antes de mais nada, deveremos analisar – dando a volta na questão – se a interactividade é realmente um elemento conceitual e esteticamente determinante na obra em questão. Na hora de examinar uma obra interactiva, deveremos questionar se a interactividade é empregada como instrumento criativo, ou se o dispositivo técnico é o único e mero motivo de existência da obra. Neste último caso, a tecnologia assumiria uma função preponderante, que não passaria da estritamente utilitária.
Ninguém pode negar que todavia continua interessando a criatividade, o processo e os conteúdos das obras. Estas questões nos situam frente a uma reflexão mais profunda sobre que influência tem o fato de usar umas ou outras ferramentas, tecnologias ou dispositivos na realização da obra.
A compreensão de nossas relações com as ferramentas ou os artefactos técnicos – a interface humano-máquina – não está subordinada somente à inestabilidade dos processos de desenvolvimento tecnológico, mas depende antes de tudo da aplicação que lhes damos. Não obstante, o artista e respeitado teórico Oswald Wiener costuma afirmar que o computador, “em todas suas aplicações até agora conhecidas, não muda nada na natureza da compreensão nem da criatividade humana”. Wiener teria razão? Pessoalmente creio que a sua afirmação é mais uma provocação à reflexão que uma tomada de posição. Proponho, portanto, aceitar o desafio de Wiener e começar a reflectir sobre o possível incremento da máquina à criação artística.
As discussões em torno deste tema estão extremamente polarizados. Até agora temos falado de uma interacção entre a obra electrónica, quer dizer, a máquina, o artista e o espectador, o usuário. Ou seja, o factor humano permanece presente. Mas, o que aconteceria se eliminássemos a participação directa do sujeito, e deixássemos grande parte do processo ao encargo da máquina?
Para o artista inglês Harold Cohen, um dos pioneiros da “Computer Art”, a questão central seria: “É possível para um computador simular o processo de criação artística, ou o processo da mente de um artista?”. Dito de outra maneira: Pode um computador simular a capacidade criativa no sentido estético? Esta é uma das questões centrais discutidas nos meios tecnoartísticos desde os anos setenta.
Alguns programas de computador denominados gramática de formas foram criados a partir do estudos exaustivos das características formais das obras de determinados pintores. As novas imagens geradas por computador simulam, assim, os estilos destes artistas. Nos últimos anos foram desenvolvidos algoritmos que executam trabalhos no estilo de Kandinsky, Miró, Piet Mondrian, etc. E aqui começam as questões: uma obra criada a partir de um programa que simula o estilo de um artista é uma obra ou um simulacro? Sobre este tema é interessante constatar, tomando como exemplo os resultados do programa baseado no estilo de Mondrian, que para um leigo pode ser difícil distinguir entre um original do autor e uma obra gerada digitalmente.
Harold Cohen acrescentou um argumento prático ainda mais contundente. Os Sistemas Expertos – programas dedicados a resolver problemas e a informar dentro de uma área especializada de conhecimentos – estão sendo empregados com êxito nos campos da química, da biologia, da medicina ou da técnica. Cohen criou um Sistema Experto de arte, denominado “Aaron”, que está preparado para pintar a partir de ideias próprias, quer dizer, não somente para simular quadros “no estilo de” Cohen, senão para criar trabalhos com estilo próprio. Neste caso, as obras criadas pela máquina não são simulações das obras de Cohen, mas o programa é um simulacro do próprio artista. Este tipo de máquinas dotadas de sistemas de inteligência artificial abrem sem duvidas um novo parênteses na pergunta sobre a possível criatividade “entônoma” da máquina, já que permite ao próprio sistema participar do processo de criação.
Antes de mais nada deveríamos analisar a acepção do termo criatividade. Normalmente se define a criatividade como a capacidade das pessoas de produzir ideias criativas, quer dizer, inéditas, surpreendentes e valiosas. Não obstante, esta definição é deficiente e incorre numa falácia: o que para mim pode ser algo inédito ou surpreendente, não é necessariamente para vocês. Por conseguinte, uma ideia é inédita tão somente com respeito ao conjunto da história que se conhece. Mas não conhecemos nem toda a história nem todas as coisas. Ou as conhecemos de maneiras sempre diferentes segundo as pessoas.
Além disso, os parâmetros do inédito e da surpresa são facilmente alcançáveis pelos sistemas de Inteligência Artificial, como Aaron, já que o programa realiza tarefas utilizando parâmetros estéticos ou transformações surpreendentes por acaso. Mais difícil é o critério de valor, posto que existem várias razões para julgar as ideias ou obras como valiosas, e estas razões não são (e nem podem ser) permanentes, já que estão estritamente vinculadas com as culturas que se transformam ao longo do tempo e do espaço. Assim o critério de valor também é relativo.
Como sabemos, existem sistemas de Inteligência Artificial de arte que dispõem de determinados critérios de autovalorização, e que inclusive podem desenvolver novos valores segundo o êxito das produções realizadas (como no caso dos sistemas de vida artificial). Fica então a questão final: Aaron pode ser considerado um artista, e suas produções podem ser consideradas obras de arte?

© 2001, Claudia Giannetti



Breve biografia

Especialista em Media Art, curadora de exposições e de eventos culturais, escritora e teórica. Doutora pela Universidade de Barcelona na especialidade de Estética Digital. Desde 1998 que é a directora do MECAD\Media Centre d’Art i Disseny de ESDi, Barcelona, España. É directora do Máster Internacional de Creación y Diseño en Sistemas Interactivos, do Máster en Creación y comunicación Audiovisual para Medios Interactivos e do Máster en Curadoría y Práticas Culturales en Arte y Nuevos Médios. Recebeu diversos prémios pelo seu trabalho como teórica e curadora. Publicou inúmeros artigos e os livros “Media Culture” (Barcelona, 1995); “Arte en la Era Electrónica - Perspecticas de una Nueva Estética” (Barcelona, 1997), “Ars Telematica - Telecomunicación, Internet y Ciberespacio” (Barcelona, 1998; Lisboa, 1998); “Arte facto & ciência” (Madrid, 1999); “ArteVision – Una historia del arte electrónico en España” (2000); “Estética digital - Sintopía del arte, la ciencia y la tecnologia” (2002).


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