Não lhe chamem arte: Ars Electronica 2003

Lev Manovich*







b #07
Out.03

Ao escolher o tema CODE, o Ars Electronica capitalizou (alguns dirão que se apropriou) certos desenvolvimentos dentro do campo da arte dos novos media que têm já alguns anos. Tal como Andreas Broeckmann, o Director Artístico do festival Transmediale (Berlim), lembrou à audiência na sua concludente apresentação durante o colóquio do Ars Electronica, já há 5 anos um artista de Nova Iorque, John Simon, sugeriu que seria útil tratar a arte baseada-em-software como uma categoria separada. Consequentemente, desde 2001 a competição do festival Transmediale incluiu a designação "artistic software" como uma das suas categorias, tendo-lhe dedicado um espaço significativo nos colóquios do festival. Outra importante plataforma para a apresentação de software art** passou a ser também o Whitney Museum de Nova Iorque e o seu Art Port web site, onde a curadora Christiane Paul organizou um importante número de exposições ao longo dos últimos anos. E, desde 2002, a software art tornou-se o assunto de um novo festival, pequeno mas muito significativo, o README. A edição de 2002 do README teve lugar em Moscovo, enquanto a de 2003 aconteceu em Helsínquia. Finalmente, em Janeiro de 2003, os organizadores do festival (Alexei Shulgin, Olga Goriunova, Alex McLean, e outros) estabeleceram um abrangente portal na web dedicado à software art, denominado RUNME.ORG. Contendo presentemente mais de 60 categorias, RUNME é um mapa conceptual em evolução daquilo que eu vejo como sendo o sentido abrangente do termo "software art": as actividades significativas, diversas e realmente criativas que se situam nas intersecções entre cultura, arte e software.

Dado que o Ars Electronica tem recursos muito mais importantes do que provavelmente qualquer outro festival dedicado aos media ou aos novos media no mundo, seria de esperar que isso conduzisse concomitantemente as discussões sobre a arte e a cultura do software a um novo nível. Infelizmente, a minha impressão do festival (de notar que apesar de ter passado cinco dias inteiros no festival, não pude assistir individualmente a cada painel ou performance) é a de que, pelo contrário, acabou por estreitar o âmbito dessas discussões. Intencionalmente ou não, a software art equiparou-se aos media gerados por algoritmos: sons e imagens, estáticas ou em movimento. Para citar a definição de "arte criada a partir do código [out of code]" presente no programa do Ars Electronica, esta trata-se "de uma forma de arte generativa que tem sido obtida e desenvolvida com base em processos computacionais" (da declaração dos directores do Ars Electronica, programa do festival, p.2). Por mais de uma vez tive de verificar o meu programa para ficar com a certeza de que estava de facto no Ars Electronica 2003 e não no SIGGRAPH — ou em alguma edição dos anos 80 do Ars Electronica, quando a computação de imagens representava realmente a área criativa central no campo das artes digitais. Num estranho loop, o Ars Electronica completou um círculo completo para incluir o seu próprio passado. Em meados do anos 90, reconhecendo que a produção de imagens em computador já não estava confinada à "vanguarda" digital mas que se tinha tornado uma norma cultural abrangente, o Ars Electronica deixou cair esta categoria, substituindo-a pela Net Vision / Net Excellence. Então porque é que terão, em 2003, a exposição e o colóquio do Ars Electronica dedicado outra vez um espaço tão significativo às imagens e sons gerados através de algoritmos? Como mesmo um rápido olhar ao arquivo do RUNME demonstra, a "software art" constitui um conjunto extremamente diverso de contextos, interesses e estratégias, e a utilização de algoritmos para gerar sons e imagens é apenas uma direcção entre muitas outras.

É verdade que o colóquio do Ars Electronica 2003 deu importantes passos no sentido de se dirigir a um conjunto mais alargado de assuntos sociais e políticos, já que lado a lado com as discussões sobre o código como software e a correspondente área da "software art", também incluiu discussões sobre o "código da lei" [law code] e o "código biológico" [biological code]. E as declarações do festival descrevendo estes tópicos acertavam em cheio no alvo, por exemplo: "o software estabelece os padrões e as normas, e determina as regras pelas quais comunicamos num mundo interligado, fazemos negócios, reunimos e distribuímos informação" (Gerfried Stocker, declaração no catálogo do festival). Contudo, tendo apenas alguns oradores para cobrir cada uma destas áreas, o colóquio não pôde explorar em profundidade essas importantes áreas. De um modo geral, vejo isto como sendo uma característica simultaneamente positiva e negativa de muitos festivais europeus dedicados aos media. Por um lado, é muito estimulante e divertido assistir a um festival que inclui exposições de arte, exibições de filmes, espectáculos musicais, discussões intelectuais e festas que entram pela noite dentro — este tipo de eventos híbridos é praticamente inexistente na América do Norte, onde se vai a um museu para ver uma exposição temática, a uma universidade para assistir a uma conferência sobre tópicos intelectuais, a uma discoteca para dançar, e assim por diante. Por outro lado, tal como com uma típica aplicação de software que tenta cobrir um conjunto de áreas diferentes, após assistir a um festival europeu dedicado aos media tenho frequentemente a sensação de que a amplitude da cobertura impede a análise do que quer que seja com muita profundidade.

Esta foi definitivamente a minha sensação no final do Ars Electronica deste ano — apesar do brilhantismo dos participantes individuais, tais como o veterano teórico dos media Friedrich Kittler e a estrela emergente Florian Cramer; os virtuosos programadores gráficos/designers, Lia, Ben Fry, Casey Reas, Schoenerwissen e outros; o Departamento de Media e Arte da Universidade de Arte, Media e Design em Zurique, que apresentou projectos de estudantes naquela que eu penso ter sido a melhor exposição do festival deste ano; Giaco Shiesser, Christian Hubler, Christiane Paul, Andreas Broekmann (e, tenho a certeza, muitos outros que falaram em sessões que eu falhei); e, por último mas não menos importante, os músicos que montaram o que para mim e muitos outros com quem falei foi o ponto alto do festival — uma maratona de cinco horas de concerto intitulada Principles of Indeterminism [Princípios do Indeterminismo]: nesta Noite da Partitura ao Código [numa tradução rude de Evening from Score to Code] apresentaram-se uma série de obras chave na história da música electrónica, com destaque para Iannis Xenakis.

Embora a exposição CODE e o Electrolobby que foi colocado em palco na Brucknerhaus de Linz tenham apresentado um conjunto vivo e diverso da prática artística, dentro e em volta do tema da software art, senti que as questões mais vastas acerca do papel do software na produção cultural não foram tidas em conta. Contudo, fora do festival Ars Electronica estas questões têm já vindo a ser activamente discutidas. Por exemplo, apenas durante o verão de 2003 e na época de exposições de outono, poderíamos ver um certo número de grandes exposições organizadas por museus e que vão bem mais longe na abordagem a esta área. Estou a pensar, nomeadamente, nas apresentações dos arquitectos cuja prática está intimamente ligada ao software: exposições individuais de Zaha Hadid (MAK, Viena), Greg Lynn (também no MAK), Assymptote (NAI, Roterdão). Noutro exemplo, os trabalhos de uma série de artistas do software [software artists] que foram exibidos no Ars Electronica viram-se também incluídos numa grande exposição — ABSTRACTION NOW— actualmente em apresentação no Kunsterhaus de Viena. Ao combinar estes trabalhos dirigidos-pelo-software com trabalhos de muitos outros artistas contemporâneos que não usam directamente computadores mas antes praticam uma aproximação àquilo que pode ser chamado "software conceptual" — isto é, baseiam a sua produção em particulares procedimentos conceptuais (por vezes aproximando-se de perto aos algoritmos) —, esta exposição organizada por dois jovens curadores, Norbert Pfaffenbichler e Sandro Droschl (ambos ex-alunos de Peter Weibel), atingiu com sucesso precisamente o efeito que faltava à exposição CODE no Ars Electronica. Ou seja, ABSTRACTION NOW inseriu a software art dentro do campo alargado da produção e do pensamento contemporâneos, dando aos seus visitantes material suficiente, organizado de forma inteligente e provocatória, para reflectirem acerca das relações entre arte moderna e contemporânea, media, cultura visual e software.

Se eu extender o contexto para lá da corrente época de exposições, a prática curatorial de Peter Weibel, depois de deixar o Ars Electronica em 1999 para se tornar o director do ZKM, exemplifica uma estratégia efectiva para garantir a sobrevivência do campo dos novos media. Após a sua chegada, o ZKM montou uma série de exposições de larga escala dedicadas a grandes questões da história cultural (CTRL[Space], ICONOCLASH, e outras); e embora os novos media tenham sido um componente essencial dessas exposições, nunca definiram o contexto no seu todo. A recente exposição FUTURE CINEMA, que se focava mais sobre os novos media seguiu uma estratégia de sucesso: de modo similar a ABSTRACTION NOW, apresentou um contexto mais alargado ao incluir uma variedade de artistas que ia desde "artistas dos novos media" dos mais duros (Masaki Fujihata, Luc Courchesne), até "artistas dos media" oriundos do mundo da arte (Eija-Liisa Ahtila, Isaac Julien, Gary Hill), e outros realizadores, mais velhos, de cinema experimental (Michael Snow, Chris Marker).

Nos anos 80 e na primeira parte dos anos 90, quando eram poucos os de fora do campo das artes digitais que usavam computadores, a existência de um festival dedicado a esta área era muito importante. Nos anos mais recentes, contudo, a situação mudou dramaticamente. Se hoje quase toda a gente no campo cultural usa os media digitais, as redes de computadores e instrumentos afins, o que é que temos visto exactamente nas exposições do Ars Electronica ao longo dos últimos anos? O que é exactamente o fenómeno da "software art" — ou os fenómenos mais vastos da "arte digital", "arte dos novos media", "ciberarte", etc.? Os participantes-chaves do Ars Electronica 2003 tomaram eles próprios posições diferentes: Casey Reas disse-me (se é que me recordo correctamente) que ele e Ben Fry se consideram designers, enquanto Golan Levin se considera artista (são os três ex-estudantes de John Maeda, do MIT Media Lab, que actua ele próprio em diferentes papéis como designer, software designer e artista). Como esta recensão não me deixa espaço para uma análise mais profunda, vamos passar brevemente em revista as possíveis respostas a estas questões.

Por exemplo, pode a "arte digital" ser considerada um ramo da arte contemporânea? Desde o fim dos anos 60, a arte moderna tornou-se fundamentalmente uma actividade conceptual. Isto é, para lá do conceptualismo propriamente dito, a arte passou a centrar-se não no medium ou em técnicas mas em conceitos. Como esses conceitos são executados é secundário, ou simplesmente irrelevante. Quando um artista pede aos visitantes da galeria que preencham um questionário e depois reúne e expõe as estatísticas (Hans Haacke), aceita um lugar como criada num hotel e documenta assim os seus quartos (Sophie Calle), cozinha uma refeição para os visitantes da exposição (Rirkrit Tiravaniija), apresenta um vídeo encontrado que foi filmado por tropas russas na Chechénia (Sergei Bugaev, a.k.a. Africa), as tradicionais questões sobre as técnicas artísticas, as competências e os media em causa tornam-se muito pouco importantes. Como disse o conhecido artista russo Africa: "o papel da arte moderna não é desvendar um segredo mas antes roubá-lo." Dizendo de outro modo, mais e mais artistas agem como uma espécie de jornalistas, investigando e apresentando várias evidências através de diferentes media, incluindo textos, fotografias, vídeo, etc. O que interessa é a ideia inicial, a estratégia, o procedimento, mais do que os detalhes sobre o modo de apresentação das descobertas ou da documentação.

Claro que nem todos os artistas agem hoje como jornalistas — tomo simplesmente isto como o exemplo mais nítido do novo papel de um artista, por contraste com os antigos papéis do artista como artesão, criador de símbolos, alegorias e "representações", etc. Resumindo, um típico artista contemporâneo que tenha sido educado nas últimas duas décadas já não faz pinturas, ou fotografias, ou vídeo — em vez disso, ele(a) faz "projectos". Este termo enfatiza apropriadamente que a prática artística se tornou na organização de vários agentes e forças em volta de uma ideia particular, de um objectivo ou de um procedimento. Já não é, então, acerca de uma só pessoa construindo objectos únicos num media particular.

(Claro que a arte contemporânea é também caracterizada por um paradoxo fundamental — aquilo que os coleccionadores coleccionam são exactamente esses objectos fora-de-moda em vez de "projectos". Na verdade, os artistas que vendem os seus trabalhos pelos preços mais altos no mercado da arte contemporânea produzem usualmente esses objectos. Este paradoxo é parcialmente resolvido se considerarmos o facto desses artistas empregarem sempre uma equipa de assistentes, técnicos, etc. — isto é, como todos os outros que vão fazendo "projectos" —, só que neste caso a natureza colectiva da produção é escondida em favor dos "nomes de marca" dos artistas individuais.)

Apesar da sua natureza fortemente social (pessoas trocando código, colaborando juntas em projectos, tratando as audiências como participantes em paridade, etc.) a alinhar com a arte contemporânea, a "software art" não pode ser considerada como "arte contemporânea", dado estar firmemente centrada no seu medium e não em conceitos que dele a possam libertar. Esta é uma razão que justifica com certeza a sua exclusão pelo mundo da arte. As lógicas da "arte contemporânea" e a da "arte digital" estão em desacordo entre si, e não vejo nenhum caminho fácil para contornar isso. Assim, por exemplo, quando o programa do Ars Electronica pergunta "Em que sentido tem o trabalho dos artistas com novos instrumentos, como algoritmos e sistemas dinâmicos, transformado o processo da criatividade artística?" (programa do festival, p.9), as próprias suposições por detrás de tal questão acabam por a colocar de fora do paradigma da arte contemporânea.

Se a "software art" não pertence ao campo cultural da "arte contemporânea", será que segue porventura a lógica inicial do modernismo artístico? Por outras palavras, estamos a lidar aqui com uma espécie de "modernismo v. 2", já que "artistas do software" e "artistas digitais" dispendem claramente imensa energia investigando as novas possibilidades oferecidas pelos computadores digitais e pelas redes baseadas em computadores no que respeita à representação e à comunicação e cooperação sociais? Esta interpretação também não funciona. Contrariamente àquilo que possamos ter aprendido na escola, os artistas modernistas não eram formalistas — pelo menos na primeira metade do século XX. A energia incrível e sem precedentes que atravessou essas décadas e levou fundamentalmente à invenção de novas linguagens de comunicação visual, novas formas, novos conceitos artisticos de tempo e de espaço, e por aí adiante, raramente foi orientada por preocupações puramente formais — isto é, investigando a especificidade de um medium particular e purificando-o de outras influências para criar obras sem qualquer referência exterior a si próprias (Greenberg). Em vez disso, as invenções dos artistas foram conduzidas por uma multiplicidade de grandes questões e objectivos — representando valores absolutos e a vida espiritual; criando uma nova linguagem visual para uma classe trabalhadora; representando o dinamismo da cidade contemporânea e a experiência da guerra; representando os conceitos da teoria da relatividade de Einstein; traduzindo princípios da engenharia para a linguagem visual; e por aí adiante. Em contraste, os actuais "artistas digitais" são tipicamente autênticos formalistas, com as suas discussões firmemente centradas no seu medium particular — isto é, o software. Resumindo, eles não são "novos modernistas", porque os modernistas estiveram sempre empenhados em valores políticos, sociais e espirituais mais amplos.

(É claro que muitos modernistas europeus foram também rápidos a "vender-se", traduzindo as suas realizações em simplesmente mais um novo estilo. Em meados dos anos 20, Lissitzky, Rodchenko, Moholy-Nagy e outros, aceitaram frequentemente trabalhos comerciais para clientes comerciais que ficaram contentes ao obter anúncios e uma identidade gráfica executados num novo estilo. Resumindo, em poucos anos a arte moderna também se tornou no design moderno. Contudo, isto não nega o meu argumento porque, pelo menos ao nível da teoria, os artistas modernistas foram sempre advogando ideias e valores mais amplos, mesmo quando trabalhavam para clientes comerciais ou estatais.)

Se existe um campo social cuja lógica é similar ao campo da "arte digital", ou à "arte dos novos media" em geral, no meu ponto de vista este campo não é o da arte contemporânea, da arte moderna ou do design, mas sim o da ciência computacional. Tal como os artistas digitais, os cientistas computacionais que trabalham com computação gráfica, multimédia, redes, interfaces e outros sectores "culturais" da ciência computacional (por oposição, digamos, a design de chips ou arquitectura de computadores) são verdadeiros formalistas — ou seja, eles investigam novas possibilidades para a representação e a comunicação na sociedade e na relação homem-máquina. Tal como os artistas do software, estes cientistas computacionais traduzem rotineiramente as suas ideas em várias versões de demonstração e protótipos que frequentemente não têm existência fora do seu próprio domínio profissional: trabalhos académicos, conferências, apresentações várias. (Porém, em contraste com os trabalhos dos artistas digitais, algumas dessas ideias acabam por entrar no fluxo principal da computação, tendo assim um forte impacto na cultura: pensem no GUI, nas hiperligações, ou na World Wide Web).

No fim do dia, se um artista dos novos media quiser que os seus esforços tenham um impacto significativo na evolução cultural, estes devem com certeza gerar não apenas explêndidos sons ou imagens, mas mais importante ainda, um sólido discurso. Ou seja, ele precisa de situar os seus trabalhos em relação a ideias que não são apenas acerca das suas técnicas de produção. A razão pela qual continuamos a discutir o urinol de Duchamp ou as primeiras esculturas com televisores de Paik, como se esses trabalhos tivessem sido criados hoje, não tem nada a ver com as competências artísticas ou tecnológicas destes artistas — tem antes a ver com os seus conceitos, isto é, com as declarações discursivas que estes artistas produziam através dos seus objectos. Em resumo, se a arte moderna e contemporânea é um discurso (ou um jogo) particular em que as declarações (ou lances) são feitos por via de um tipo particular de objectos materiais identificados como "obras de arte", os artistas digitais precisam de tratar os seus trabalhos da mesma maneira para entrarem no domínio mais amplo da conversação cultural. Isto significa referir-se às declarações históricas e àquelas que circulam actualmente nos campos da arte contemporânea e/ou da cultura contemporânea de um modo geral. E enquanto os organizadores do festival Ars Electronica 2003 parecem ter entendido isto — "A arte dos media que é coerentemente e consistentemente concebida nunca será limitada ao uso artístico dos meios técnicos" (Gerfried Stocker, declaração no program do festival de 2003, p. 7) —, o festival em si mesmo, na minha opinião, não encorajou um diálogo real entre a arte dos novos media e a arte contemporânea, simplesmente porque não incluiu ninguém deste outro campo.

Se explêndidas imagens de computador não são suportadas por ideias culturais igualmente brilhantes, a sua esperança de vida é muito limitada. Estão destinadas a serem simplesmente esquecidas, tal como aconteceu com grande parte da arte dos media — apenas porque o software e o hardware de que essas obras necessitavam para correr já não existe. Alternativamente — e é difícil dizer qual é o pior destino — podem acabar como botões ou plug-ins em software gráfico ou multimédia de grande circulação. Este é o perigo sempre-presente para alguém que trabalhe em tecnologia de ponta — se os resultados não se tornarem parte de outras conversações culturais, irão inevitavelmente ficar dentro do próprio campo tecnológico: simplesmente apagados por novas gerações de software e hardware, ou então incorporados no seu interior como elementares peças de um conjunto mais vasto.

Ao dizer tudo isto não quero deixar implícito que a arte contemporânea é de alguma maneira "melhor" do que a arte digital. Cada cultura tem necessidade de diferentes discursos, declarações e práticas; historicamente estes estão distribuídos ao longo de campos culturais variados. Hoje, por exemplo, descobriremos que o desenvolvimento de novos estilos é feito sobretudo pelo design; a tradição do retrato (representação de um ser humano em particular) é levada a cabo fundamentalmente na fotografia comercial; a literatura e o cinema assumiram o papel de representar a existência humana através de narrativas, no que foi o papel do teatro no período clássico; e por aí adiante. Alguns campos no interior da ciência computacional, a tendência do design mais orientada para a investigação e a arte digital têm afirmado o seu papel único e extremamente importante: inventar novos métodos e técnicas de representação e comunicação. Quanto à arte contemporânea, não tem actualmente um papel bem definido no seio desta divisão cultural do trabalho. É antes um campo em que podemos fazer declarações que não seriam possíveis em qualquer outro campo, seja na ciência, nos media, etc. Estas declarações são únicas no que respeita ao seu assunto, ao modo como vieram a acontecer e à forma como são apresentadas. Nem todos os artistas contemporâneos tiram total vantagem desta situação única, mas os melhores fazem-no.

Enquanto os campos da arte contemporânea e da arte digital desempenham papéis muito diferentes e são ambos, por razões distintas, culturalmente importantes, estão ambos também limitados de um modo complementar. Se os dois campos conseguirem aprender um com o outro, os resultados poderão ser muito excitantes. A arte contemporânea é também histórica: uma declaração típica neste campo, quer seja feita por um artista ou por um crítico, refere-se inevitavelmente a outra declaração ou declarações feitas durante as últimas décadas nesse mesmo campo. A arte digital sofre da doença oposta: não tem memória da sua própria história, podendo por isso beneficiar de uma recordação mais sistemática do seu passado.

Para concluir: esta breve análise não significa um ataque aos campos da "arte digital" ou da "software art" no seu todo. Os seus melhores praticantes estão preocupados com amplas questões sociais e políticas. Além disso, os melhores trabalhos de arte digital são capazes de encontrar o equilíbrio certo entre um forte conceito que não é inerentemente técnico e a atenção ao software como medium (estou a pensar em clássicos como Carnivore e Auto-Illustrator). Outros talvez estejam mais preocupados com problemas tecnológicos ou de design, mas, também aqui, os melhores trabalhos estão a dar uma contribuição ímpar para um diálogo mais abrangente: por exemplo, as visualizações de Ben Fry que nos permitem descobrir relações nos próprios dados e no seu desenvolvimento dinâmico — algo que não era possível fazer, até agora, na história das representações visuais. Todavia, outros são programadores que não se consideram sequer como artistas, o que lhes permite — mesmo admitindo que eles possam não o saber — produzir declarações artísticas genuinamente interessantes (a RUNME.ORG reconhece que algumas das mais interessantes actividades presentes na "software art" partem de pessoas que vêm de fora do meio— da mesma maneira que a bem mais antiga "medal for web art" de Shulgin foi atribuída a sites na web que não eram construídos por auto-proclamados artistas, mas que exibiam uma "sensibilidade artística original". Tal como declara o site RUNME.ORG, "a software art é uma intersecção de dois domínios que quase não coincidem: arte e software... Ficamos contentes por alojar neste arquivo diferentes tipos de projectos — que vão desde software encontrado e anónimo a projectos famosos realizados por artistas e programadores reconhecidos.")

O que eu quis criticar não foi o campo extremamente importante e dinâmico da "software art" mas sim o modo como este se encontrava representado no Ars Electronica 2003, cujo paradigma só pode ser descrito como isolacionismo cultural. E esta é uma posição perigosa de ser tomada. Hoje, quando quase todo o artista e produtor cultural vai usando amplantemente computadores no seu trabalho, ao mesmo tempo que é também tipicamente motivado por muitos outros temas e discursos, é de facto possível que a "arte digital" aconteça em todo lado menos dentro dos espaços do festival Ars Electronica?

Ligações:
http://www.aec.at/en/festival/
http://www.transmediale.de/
http://www.runme.org/
http://www.m-cult.org/read_me/
http://www.abstraction-now.net/
http://www.zkm.de/futurecinema


[Agradecimentos à Rachel Greene pela edição do texto]


*Lev Manovich | http://www.manovich.net | lev@manovich.net
Associate Professor of New Media, University of California, San Diego
2003 Guggenheim Fellow
[Este texto foi enviado originalmente para a lista de discussão Nettime - http://nettime.org.]

** Optámos por manter a expressão software art em inglês ao longo de todo o texto, seguindo assim a utlização corrente em português de termos semelhantes como net.art ou web art, por exemplo. Respeitámos escrupulosamente a utilização de aspas com este mesmo termo sempre que essa era a opção do original em inglês, mesmo se o critério possa não parecer coerente (N. T.)


Tradução: virose (ml)


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