Boys and Girls


Ivo Martins







b #05
Jun.03



Uma vez estava a fazer algumas tarefas habituais das minhas relações com o jazz e, enquanto aproveitava para pensar, surgiram-me várias questões passadas que fui percebendo durante as minhas experiências pessoais no campo da música e da arte. As interrogações apareceram e dessas dúvidas fui construindo um discurso mínimo de racionalidade que me ajudou a ir caminhando neste território tão extensamente depauperado de certezas e que eu tenho de perceber por discursos simplificados e desprovidos de conteúdo.

Já sabia que as pessoas ao escutarem música estão sempre a colocar no que ouvem a sua capacidade de entender. Já sabia que em muitas outras formas da nossa vida continuamos a pensar segundo os nossos interesses, tantas vezes os mais mesquinhos. Percebi, também, que esse processo era realizado de uma forma natural e que lhe está implícito o acto de compreender. Neste sentido podemos considerar que a este mecanismo de busca, está subjacente a procura de uma certificação de normalidade. A normalidade que advém do aferirmos a nossa audição através de gostos que se exprimem numa maioria dita “normal”. Aquilo que nos é dado ouvir transforma-se num mero acto de atenção, que é antes de mais um teste pessoal, às necessidades de aspirar pertencer a um colectivo normalizador e protector, uma síntese de muitas formas de ouvir e das quais uma avaliação desinteressada do que se escuta, permite que se possa falar de um gosto colectivo e uniformizado. Baudelaire afirmava que “o gosto exclusivo do Verdadeiro (nobre aptidão, quando aplicada aos seus fins próprios) oprime o gosto do Belo” (1).


De facto, a verdade manifesta-se como um elemento de análise fundamental, desde que não impeça a captação do belo. Se as pessoas continuam mais preocupadas com a sua verdade - a verdade pessoal, o que é ainda mais grave - do que sujeitarem as suas aptidões, mais ou menos esclarecidas à aceitação pura do belo, esse mecanismo de segurança que se traduz em entender automaticamente o que se escuta deixa de parte as experiências mais interessantes do processo aberto de compreensão. O que interessa aqui, passa por se saber o que de facto se quer, quando se desconhece as limitações que este tipo de atitude contém. Mas quando percebemos que associadas a estas razões defensivas estão outras que se prendem com a protecção da sua integridade pessoal, a manutenção do seu território, do seu espaço de influência, a validade da sua força de interacção no grupo, podemos ver como estes interesses estão distantes das verdadeiras atitudes de pesquisa do belo. A arte acaba, para todos eles, como mais uma actividade social, política e económica, numa pura retórica de estilo.


”A nossa visão da vida moderna tende a dividir-se em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas dedicam-se ao «modernismo», encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autónomos; outras situam-se na órbita da «modernização», um complexo de estruturas e processos materiais – políticos, económicos e sociais – que, em princípio, uma vez desencadeados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana” (2). O problema que aqui se coloca, é a sua tónica numa acentuação negativa sobre como pode ser feita com sucesso a passagem do pensamento ao acto, sem que nenhum destes momentos se profane ou actue destructivamente sobre o outro. Ambos se revelam premonitórios, na medida em que se distingue perfeitamente o «homem fáustico como aquele que faz a história» do outro, que permanece e vive no velho mundo. A esmagadora maioria das pessoas já não existe em «pequenos mundos», a vivência actual talvez só consiga representar, de uma forma metafórica, a nostalgia dos nossos mundos perdidos. Talvez a arte possa representar essa mesma representação e por isso mesmo sempre sujeita a uma atmosfera interior de destruição, de perda e de morte. Talvez assim, as pessoas tenham também muita dificuldade em conviver nas melhores condições neste difícil contexto, onde a sensação de colapso eminente se frutifica nas mais pequenas formas de incerteza e onde as ansiedades buscam afanosamente posicionar- -se por mecanismos mais activos onde o peso da componente ideal é sucessivamente descarregado através de uma prática activista, militante, voluntariosa e como tal «modernizadora». Quando este processo é adoptado pelos artistas, aqueles que, por princípio, deveriam saber conviver neste terreno sem perdas de identidade ética, apresenta-se nos seus gestos o resultado de uma grande pobreza que não vai além de pequenos vícios de um mundo “fáustico”, sempre a confrontar com a morte a sua reles vida sobrevivente. Julgo que, actualmente, as relações dos artistas e de todos os que circulam na sua órbita se apuram por questões de mera retórica, entre o político, o social e o económico. Não acredito pois, numa arte orientada para exprimir os valores do belo. As relações públicas ocupam um, cada vez maior, espaço de intervenção nos mecanismos em que se organizam e as estruturações dos interesses comerciais andam aí para extrair mais dinheiro. Vivemos no espectáculo da vida elegante onde tudo é fugaz e difícil de apreender. Estabelecemos ligações superficiais que nos permitem não arriscar muito os nossos conteúdos, ou porque não existem e dão muito trabalho a transmitir ou porque nem sequer são necessários. Existimos segundo um regime de mínimo comprometimento onde o público e o privado quase deixaram de ser relevantes. Somos só uma imagem.

 

Sabemos que existem muitas músicas urbanas. Elas são uma consequência de um drama existencial que a grande cidade vai proporcionar a partir do séc. XIX. “No prefácio de Spleen de Paris, Baudelaire proclama que la vie moderne exige uma nova linguagem: «uma prosa poética, musical mas sem ritmo, suficientemente flexível e suficientemente rude para se adaptar aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e sobressaltos da consciência» (3). O que impressiona é que Baudelaire fez estes poemas em 1860 e neles estão contidos os pressupostos essenciais da arte para o século seguinte. Pode interpretar-se que a música sem ritmo, suficientemente flexível e suficientemente rude, terá sido pela primeira vez transformada em conceito num tempo e num espaço que não lhe diz respeito e que foi vista com uma extrema clareza. Apesar deste facto, ainda hoje continuamos a sentir a arte e a música segundo uma visão conservadora contra a sublevação e a renovação permanente dos modos e das formas. Sendo que esta é ferozmente imposta por aqueles que dominam o mercado, tudo fica subjugado a uma competição implacável onde não agir equivale a pura e simplesmente desaparecer. Inovar para manter o negócio, controlar para manter o lugar, prescindir da livre vontade, acatar as maiorias, aceitar a pressão do colectivo, passaram a ser alguns pontos de convergência de uma desintegração que actua como força mobilizadora, logo integradora. Todos nós aspiramos à estabilidade, mas esse estado significa, entropia, morte lenta. Talvez se possa compreender, agora, como se torna essencial para a sobrevivência artística existir um processo de mutação constante nas estratégias da concepção de projectos.

 

Pertencemos ao imenso grupo dos banalizados e, depois disto tudo, tenho dificuldades em pensar no que me vai acontecer a seguir, ainda que os sinais que vá sentido por parte dos que estão perto de mim me deixem inquieto. Não é que esteja preocupado em achar um futuro, esse contrato entre mim e o Diabo. Milhões de pessoas são vítimas, todos os anos, de desastrosos planos de desenvolvimento, da incúria de tantos e tudo parece estar a ser naturalmente aceite. Aquilo que possamos fazer neste estado de coisas parece-me muito pouco.

 

Na arte, na música, como na vida todas as classificações são abusivas. Os cobardes constroem sempre estratagemas.  

 

Já tinha pensado sobre algumas das formas de acção que se manifestam entre os que criticam, os que promovem, os músicos e os outros. Elas revelam uma crença evidente na história como o único meio eficaz de tornar eterna a sua actividade; eles olham para trás e acreditam no que vêem, sentindo que essa realidade é uma parte intrínseca das suas vivências. Em vez de se sentirem desorientados, com as inúmeras dificuldades de se ter de viver num meio onde o movimento e o sobressalto fazem parte integrante de um quotidiano em mutação permanente, sentem o imenso prazer do participante que, acima de tudo, se estrutura na crença de que é actor e que a sua acção muda alguma coisa. Não somos parte em lado nenhum, passamos o tempo a gerir incapacidades de compreensão nesta impetuosa pressa que nos atormenta e, arrastados sem controlo, somos lançados na corrente dos acontecimentos diários, onde tudo se dilui, metamorfoseia e desintegra em algo irreconhecível. A produção e o consumo tornam as actividades humanas cada vez mais internacionais e cosmopolitas. A relação local sucumbiu e desapareceu dando lugar a uma escala planetária de comunicações, de elevado índice tecnológico e de uma requintada sofisticação. A automatização desenvolve-se a um ritmo vertiginoso, numa busca desenfreada de caçar o instante. Colapsar a diferença de tempo entre o acontecimento e a sua recepção informativa, deve ser uma das metas a atingir neste drama intensamente burguês e capitalista em que vivemos. As ideias deveriam ser uma forma de gerar novas ideias, por isso se julga que todas as que nos aparecem de uma maneira definitiva não têm interesse. Quando alguém utiliza a possibilidade de falar de um concerto e de transmitir o que pensou, num modelo fechado, absoluto e final, imediatamente perdeu uma oportunidade de desenvolver uma ideia geradora. Vivemos rodeados de ideias mortas, que não contêm qualquer incitamento à criação. São narrativas exaustas. Desprovidas de vida interna. Enclausuradas num redil de pontos previsíveis, onde o prazer de descobrir estagnou. A retórica do jazz, em Portugal, apresenta estes tiques anquilosados numa repetição compulsiva. Existe também, nalgumas prosas, um desprezo categórico, quase histérico, pelos homens que fazem a música e, noutras escritas, o excesso de uma multidão que idolatra, cega na sua avidez mitológica. Todos os regimes totalitários tendem a levar ao extremo a colectivização de todos os ideários, a partir do qual se estruturaram. O jazz cai por vezes neste tipo de tensões, onde o músico/mito além de ser uma construção de uma mente colectiva frustrada, se manifesta antecipadamente superior antes de tocar qualquer coisa. Não posso apoiar este tipo de impulso, embora o entenda e perceba a sua utilidade numa sociedade que já não possui deuses para acreditar. Existe uma puerilidade de circunstância que leva as pessoas a procurarem mitologias alternativas no mundo da arte. O Jazz que se anuncia nas revistas, nos jornais, nos meios de comunicação é uma música fantasma no meio de formas e símbolos que, há muito tempo, morreram. As pessoas insistem em perder tempo e a ouvir e falar destas coisas, encarnado o espírito próprio de uma modernidade do subdesenvolvimento. Por mais que se escreva, fale sobre o Jazz, ninguém pode controlar as acções e as interacções que nele vão decorrendo. A arte será sempre uma espécie de zona livre onde todas as forças psicológicas e sociais podem-se desenvolver espontaneamente. Quando o que se diz tem o peso de ser uma ideia fechada, como atrás referi, resta o ridículo de se sentir a fragilidade dum acto falhado. Tudo em Portugal soa a acto falhado.

 

Sinto que falar só de jazz é algo de muito pobre, quando se pode alargar todas as visões para os amplos domínios da arte. Não tenho qualquer tipo de reserva em relação ao jazz, mas percebo quanto é limitado olhar os acontecimentos exclusivamente pelo seu prisma, por isso, muito do que quero referir deverá ser considerado numa perspectiva mais vasta. Os fenómenos da existência aplicam-se indiscriminadamente a todas as parcelas da actividade artística e os pontos de vista que só dizem respeito a uma música, a uma obra de arte se não forem acompanhados de uma compreensão mais global, serão mais uma crónica desinteressante e inconsequente. Vivemos no sistema das aparições deslumbrantes, fachadas luminosas, espectáculos triunfantes, decoração, estilo, brilhos e afins. Os rostos estão vazios, encontramos esboços de beautiful people por toda a parte, uma esfuziante harmonia, preservada no tumulto de tanta gente vulgar em movimento. Quiseram que tudo fosse sendo estruturado assim, entre habilidosos esboços de fantasia, vida degradante, nas capitais do mundo civilizado. A arte assemelha-se, cada vez, mais a anúncios onde a esplendorosa elegância intelectual transforma o mundano em provinciano. Somos material de propaganda, sem sermos pagos para isso. Esta é a cultura que temos. Onde está a aventura espiritual da modernidade tantas vezes proclamada pelos especialistas? Hoje andam totalmente envolvidos nas campanhas propiciadoras das suas carreiras. Procuram o sucesso do seu negócio como um vulgar capitalista. Estão pesados, solenes, não sei se usam bigode, não têm olhares, são indeterminados, mas ressalta das suas faces um semblante orgulhoso de alegria e obediência. São estes os nossos artistas e os seus acólitos. A cultura é actualmente uma actividade cada vez mais duvidosa e pretende cativar para o seu desfile de vaidade os espíritos mais livres. Um desfile que reflecte os movimentos rápidos dos expedientes, as agilidades malabaristas dos oportunistas, as graciosidades hipócritas das avaliações, os sentimentos sem lágrimas pelo outro, um brilho gorduroso nos olhares concorrentes e uma cor suficientemente kitcsh que ilumine tudo isto. Todas as vítimas possuem algumas características básicas comuns que lhes permitem exercer cabalmente as suas funções nos destinos que lhes estão reservados. Uma vítima não existe sem um destino, uma profecia, qualquer coisa que antecipe o seu estado de bode expiatório ritual. É honesta e conscienciosa, tímida e modesta e afasta-se das intrigas que mantêm vivos e interessados os seus colegas de vida. Já sabia que as intrigas e os gracejos ajudam a passar o dia a muita gente. Mas a vítima assume neste domínio um papel essencial. Congrega dentro de si estas energias, e existe nela uma espantosa predisposição natural para assumir esse peso do ridículo alheio. Neste sentido ela possui um papel de higiene social ao dissolver conflitos e receber as culpas quando são necessárias exportar. As pessoas aspiram a coisas tão vulgares como comunicar livremente e reconhecerem-se como iguais, mas as vítimas incomodam-nas na realização destes desejos, porque os seus olhos questionam-nos e querem respostas sobre os fins da tagarelice reinante. Os meios de comunicação, em vez de unir as pessoas, vão produzindo um abismo enorme entre todos, separando ainda mais as ténues relações existentes. As vítimas começam a parecer-se demasiado com as que não o são. Existe uma inefável ambiguidade entre todos que passaram a ser o molde, a partir do qual se elaboram enigmas. Eles têm o olhar da esfinge.

 

Compreendo que todos pensem que a simpatia pelos fracos e oprimidos fez parte de um certo maneirismo intelectual racista que o colonialismo português haveria de transformar em ideias politicamente sociais. No entanto, do que se pensa à sua prática vão muitas e grandes distâncias. No jazz em Portugal, com uma guerra colonial a decorrer, esta deferência com os negros americanos sempre me soou a um obscurecimento perverso, um prazer criado pelos seus sofrimentos. O fascínio da degradação tornou mais evidente esta estranha reacção hiper-colonial. Nada melhor do que um país como o nosso para se encontrar as pessoas que fossem capazes de idealizar uma sociedade onde, aos negros competia o espectáculo e aos outros o seu fruir. Sempre me dei muito bem com as arrumações de ideias e quando, actualmente, revemos umas quantas manifestações de quem escreve sobre jazz, ainda cheias desse espírito colonial eminentemente racista, fico perplexo a pensar se eles não estarão a perceber o que são. Só pode reivindicar, nos dias de hoje, a cor da pele, quem pretende referir que esse facto constitui um qualquer argumento na arte ou na música. Quem o faz, desconhece os pressupostos essenciais de uma sociedade moderna. Para alguns a menoridade étnica persiste como mecanismo compreensível de uma certa realidade e o conceito constituinte de ideias como a do branqueamento do jazz, é ainda uma forma larvar dessa divisão geográfica do homem segundo a sua disposição natural em continentes, tratando-se de uma espécie de taylorismo darwinniano, que nem as delícias libertadoras de uma revolução democrática em 25 de Abril de 1974, conseguiu expurgar do nosso pensamento comum. As perseguições políticas, religiosas e sociais tornam-se momentos endémicos de existência que estão sempre a reaparecer como desenvolvimentos diferentes segundo as interiorizações do tempo e do espaço onde se sublimam e repercutem.

 

 

“Desde os triunfos dos expressionistas abstractos às iniciativas radicais de Davis, Mingus e Monk, no jazz, até obras como A Queda, de Camus, À Espera de Godot, de Becket, The Magic Barrel, de Malamud, O Eu Dividido, de Laing, os trabalhos mais interessantes dessa era caracterizam-se pela distância radical em relação a qualquer meio ambiente compartilhado”. (4) Deve entender-se por ambiente o meio urbano da grande cidade - a primeira construção modernista que surgiu em finais do séc. XIX e que foi um elemento determinante de todo o séc. XX; construção que haveria de assumir uma necessidade de primeira grandeza num mundo em constante renovação. Ainda hoje vivemos essa mobilização geral empreendedora de uma sociedade que resiste criando sucessivos progressos. A cidade passará a ser um local em construção, palco de novos espectáculos onde lâmpadas, máquinas, operários e materiais realizam o processo de manter o público fascinado. Todos fazem projectos de novos espaços e recuperam zonas degradadas. Implantam-se parques, avenidas, edifícios, viadutos, pontes, auto-   estradas, bairros, fábricas, escritórios, museus, bibliotecas, estádios, metropolitanos, centros de cultura, comboios de alta velocidade, aeroportos, orlas marítimas tratadas. Continuamos a procurar uma saída para um desenvolvimento que se autodegrada, a serpente que se come a si própria entre o fluxo rápido das leis do tráfego. O movimento insaciável. A arte morre perdida neste auge de criatividade, exuberante, implacável e deplorável. Todos terão o seu momento de aclamação pública e nada se resolve. Esse momento continua a inspirar os homens a fazer mais. Entretanto a ideia de reciclagem aumenta as possibilidades de se descobrirem novos significados de um mundo já de si extremamente depauperado, degradado e ruinoso. O artista irá, mais uma vez, vencer as habituais dificuldades de afirmação no meio, cada vez mais alienado, enquanto escolhe esta nova aberta de acção, preparada para perpetuar o desenvolvimento do mundo burguês. Demolir ficará a ser a palavra de uma desordem, um empreendimento que lhe levará em dedicação, muitos dos anos da sua existência obsoleta. Vivemos em épocas de demolições mais ou menos organizadas. Já chegamos a uma fase em que nos podemos deliciar serenamente, ao pensarmos que temos o poder de demolir tudo. Demolição planetária. Neste momento encontramos a parábola perfeita para a nossa cidade; será um andaime permanente de símbolos que se colam e degradam, como uma parede de cartazes. Surgem murais de coisas inconsequentes, numa ideologia universal decadente, aterrorizada por insanáveis e ameaçadores conflitos. Nunca a tensão suburbana esteve tão presente nas nossas vidas de uma forma global. Os espectadores de arte são os membros desta comunidade falida e os museus levam as pessoas às cadeiras para olharem a radicalidade pós-moderna. Estamos enclausurados debaixo de um manto inefável de bronze, um firmamento mineral a pairar sobre as nossas cabeças, um mundo sombrio que liga as nossas linhas de vida como um quadro para uma nova integração da espécie.

 

As exposições institucionais e os concertos de música, em grandes anfiteatros são paródias à organização da cultura arremessadas pelo artista. Por vezes o artista e a audiência confundem-se. Não sei a quem me devo lamentar, se às circunstâncias que promoveram este uso indiscriminado do entulho como meio de construir novas formas, ou se ao período em que a participação activa e popular fez da arte um investimento. Do Estado aos mecenas todos desejam criar uma beleza cosmética e uma camada protectora que disfarce com fervor toda a brutalidade e cobiça da glorificação empresarial. Os museus passaram a ser as organizações que melhor sabem construir uma fachada suave para essa podridão empreendedora. Os artistas vivem cada vez mais na terra do espírito de fronteira. Aí as hierarquias amolecem, porque todo o território está em movimento. Viajar debaixo das profundezas enterradas dirigidos por majestosas visões de ruína entre salas de degradação e morte e interrupções descobertas por edifícios de vidro, constitui a via rápida da beleza suprema entre cortes de miséria humana - escorre sempre tinta no local. Estou farto de história. Passo por corpos abandonados, danificados, sugados pela insensata avareza de alguns, corpos apaixonados que se movem em cápsulas abertas no fundo de enigmáticos filmes mudos, redes de comunicações, esplêndidos monumentos, vitalidade e angústias, ruídos, matérias sonoras e ritmos, música que faz vibrar os tecidos dos nossos ouvidos, enquanto as pessoas compram automóveis e novas tonalidades de pele. A vida virada do avesso que passa por mim a correr diz que vai na sua aventura e eu sinto-me seguro. Percebo perfeitamente quando a ruína está acumulada em número suficiente para que a partir daí se inicie mais uma espantosa diversidade destruidora: culminar um novo apogeu no espaço da catástrofe onde dos restos se faz arte.

 

Até o pó do museu tem cultura; todo o lixo do museu tem imaginação; o poder de recordar e de procurar esquecer, como uma luta interior. Temos de saber traduzir a realidade a partir de um manual de instruções; tentar perceber que se colocam algumas interessantes questões sobre a actividade de passar para uma nova língua, textos sobre assuntos mais ou menos vulgares como a mecânica, o turismo, a arte e a literatura. Tudo se transforma num produto inacabado abrindo caminho para a intervenção criativa.


Isto está ser escrito em circunstâncias difíceis. Estava marginalizado dos interesses de grupo que fazem trocar favores e dissabores, o que não constitui necessariamente uma desvantagem. Por isso sinto uma pressa em fazer tudo muito rapidamente, com medo de perder esta possibilidade que uma exclusão como a que estou a viver me proporciona. As aprovações dos outros, os auxílios, os reconhecimentos, não produzem mais nada do que umas tantas personagens medíocres a abarrotar de conformismo. Somos seres transformativos em queda degenerativa de qualidades, a sobreviver numa organização secundária de pilhagens sucessivas assentes em meia dúzia de dogmas ameaçadores.

 

Estamos permanentemente sujeitos a uma prática de encontros cada vez mais anónimos, experimentais e fugazes. As pessoas não têm rosto, nem corpo, nem história, sendo apenas aquilo que deixam revelar e neste contexto desenvolvem-se novas fórmulas de relacionamento e de organização da vida quotidiana que urge ser repensada. Começamos a estar confrontados com outras concepções de espaço e de tempo. Não sei se a velha questão do tempo real interessará para as novas perspectivas de interacção que se avizinham. O conceito bem netiano de virtual passará para outras dimensões que se ajustam a mundos e visões extrasensoriais, aquilo que o uso de drogas, álcool e químicos, de certa forma, desde sempre, anunciaram: ultrapassar os sentidos numa primeira fase, a seguir o corpo e a seguir o espírito, a caminho de outras dimensões. As pessoas estão demasiado inocentadas pelo mecanismo corrente da irresponsabilização que se foi instalando, de tal modo, que para que possam ser levadas muito a sério, teremos de criar uma nova linguagem. Quem entra neste jogo tem de saber caminhar sem noções de escárnio e mal dizer, tem de estar impune ao mau trato e ao processo de pensar sobre si.


Detesto definições. Todos nós aprendemos a usá-las desde pequenos e isso vai embotar as possibilidades futuras de acharmos intuições reveladoras. Ficamos réplicas de réplicas. Para alguns a cultura sempre foi um processo de “desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas”. Esta visão acabaria por passar de moda. Gosto mais daquela que a associa a modos de “pensamento e comportamento que são transmitidas por interacção comunicativa”. Ou então aquela que diz que o “homem é um animal suspenso em teias de significação que ele próprio teceu”, onde “portanto, a sua análise não é uma ciência experimental em busca de lei, mas sim uma ciência interpretativa em busca de sentido”. (5) Não quero, porque não sei, achar explicações para esta necessidade de se definirem coisas. É evidente que esta tarefa está enraizada nas nossas práticas ancestrais, constituindo uma parte importante no mecanismo de acumular e transmitir informação num mundo muito limitado em meios de comunicação. Mas agora quando se sabe da quantidade impressionante de recursos disponíveis, alguma coisa terá de mudar forçosamente. O que mais me seduz numa estrutura social são aqueles que, agindo no seu interior, não se manifestam favoráveis ao seu desenvolvimento. Num certo sentido todas as construções geram automaticamente forças contrárias que intervêm para o seu próprio fim. Esta tensão entre pontos de orientação diferentes pode chamar-se cultura. Existe um efeito de colagem
que, como diz Giddens , “a apresentação dos media assume a forma de justaposição de histórias e elementos sem nada em comum além do facto de serem ‘oportunos’  e sequenciais”. A vida surge como uma realidade, aparentemente unitária, quando ela é a sobreposição de vários elementos radicalizando, globalizando, reproduzindo, recombinando e criando novos conteúdos. Todo o acto exige uma participação cujo processo também arrasta atrás de si uma hierarquização onde actuam poderes políticos, económicos e sociais. Existe pois, uma estratificação de planos onde se encontram indivíduos e organizações. O que mais me admira nas pessoas, porque nada do que até aqui disse podia ser objecto de análise sem elas, é a coerência, a paciência e a serenidade. O irónico e o sentido de humor completam as características que considero mínimas para que se possa viver despercebido numa multiplicidade de factos. O difícil é saber retirar deles uma análise coerente. A simplificação desta tarefa só se torna possível quando tudo o que se sente é uma consequência da forma infatigável de ser. Quem ensina pela prática? Muito poucos.


Se temos de denunciar o que se passa é porque tendemos para silenciar aquilo que pode gerar a oposição entre pessoas e que, portanto, interessa ser omitido. Os nossos diálogos parecem cada vez mais respostas a cartas. São escritos por um computador qualquer.

 

Já lá vai o tempo em que a arte assumia um papel fundamental na perspectivação das ideias mais radicais. Hoje, o discurso político e religioso percorre sozinho o caminho até ao desvario na procura de uma sociedade minimamente possível. O fluxo ininterrupto de acções construtivas e destruidoras compõem a aparência de um terreno que se muda e refaz sob os auspícios de muitas organizações correctoras. Devolvidas segundo uma lógica da sistematização perfeccionista e, na maior parte dos casos, constrangidas por crises sazonais de desenvolvimento, estas medidas de apuramento funcional contribuem, quando postas em prática, para que passemos a ter a noção de que não podemos ir muito mais longe nos nossos devaneios regeneradores. Procuramos um paraíso onde cada um possa viver segundo as suas naturais aptidões e necessidades pessoais. Aparecem depois aqueles que pensam as suas vidas como se existisse a possibilidade de se fazer algum compromisso entre a emoção e a razão. Diremos que o lado intelectual - palavra de indefinição e de sentido pouco claro - se tenta orientar de uma forma apaziguadora relativamente aos impulsos interiores das nossas vidas espirituais. Gosto deste tipo de simplificações, visões dualistas que se dividem, como o eu dividido da anti-psiquiatria. Encontramos assim gente que se orienta neste terrenos utilizando formas de pensar tão pueris e que, ao mesmo tempo, não tem vergonha de escrever e tornar públicas estas ideias. O seu sentido crítico é pura e simplesmente transferido para os outros, os que são objecto das suas visões; eles estão, assim, como que autodispensados de si. Encontramos sempre as mesmas tendências, os tempos mudam, mas os actos multiplicam-se de uma forma igual. Onde é que tudo falhou? Estamos numa terra devastada por excessos.

 

Nunca saberemos o que nos vai acontecer a seguir, mas todos falam como se o soubessem. É este desespero causado pelo modo como se pode acreditar em tal coisa, que me faz sentir a imensidão do dispêndio de energia aplicada em tantas revoluções falhadas. Esta fé imprevidente que nos rodeia e deixa antever mais momentos perdidos. Somos uma miragem, habitantes de uma cidade-fantasma, cuja grandeza e magnificência se dissolvem no ar putrefacto de cadáveres e projectos falidos. O nosso urbanismo cheira a urna. Construímos incessantemente casarões, monumentos, uma manifestação de um simbolismo espectral que pretende ser a própria existência de um dinamismo e uma determinação salvadora. Fazemos o mesmo nos nossos sepulcros, embelezando-os como se fossem apartamentos. Os cemitérios são talvez, um dos lados mais autênticos da actividade quotidiana, sendo que neles tudo existe para esse fim - o nosso. Mantemos viva uma estética do subdesenvolvimento porque os artistas se venderam a uma política de trabalho forçado por entre as formas e os símbolos da criação, agindo como trabalhadores por conta de outrém. Os museus e as organizações paraculturais fazem as tarefas de principais angariadores desta rede de trabalho escravo, que se deixou enclausurar numa servidão entre o poder e a arte. Criamos um sistema sem motor, adormecido, num peso morto que trata a arte como um movimento de mercadorias. Sabemos quanto se torna importante que possamos viver num espaço onde a volatilidade e a instabilidade de uma cultura aconteça de uma forma natural que gere uma polarização duradoura dos horizontes da imaginação, afastando os tacanhos processos de reconhecimento dos seus patrocinadores e exprimindo uma resistência permanente à prática tida como correcta - manifestada segundo modelos de disparidade radical, prescindindo de cultos exteriores majestosos que apenas escondem podridão: «capas de civilização». Depois todos cultivam um ritual de inimizades brutais e um desprezo categórico, quase histérico, pelo o outro. Recriam um clima sórdido, narcisista, onde todos correm para admirar a sua imagem vulgar, numa representação da realidade que se define no desprezo acrítico pelas pessoas reais que se movem à sua volta. Vivemos um segundo espectáculo da vida elegante, como se existisse um ponto suficientemente crucial de todo este novo heroísmo. 


Sabíamos que estávamos perdidos, ainda que numa parte considerável das coisas comuns, as pessoas parecessem continuar a fazer o seu melhor. Às vezes deixavam cair a sua máscara e mostravam a sua face torturada. Todos aprendemos a não sofrer muito com estes actos de nudez aparente. Era uma festa de todas as inimizades brutais, que se manifestavam numa vulgaridade efémera, volúvel e frívola. A podridão atrai podridão.


Em certos momentos fico triste. Um esmero de inúmeros sentimentos inacabados passam a correr. Fugazes como um olhar. Entretanto continuava a perder tempo em palavras. Os seus gestos eram destituídos de sentido prático. Pareciam-me meneios de uma rusticidade transfigurada em montes de razões imersas. Um lugar húmido apoderou-se do local onde estava a reprimir-me. A minha infância surge com uma nitidez inquieta, que se confunde sobre o momento presente e real. Estou vazio e a definhar por dentro.

 

Todos sabemos que defender a possibilidade de criar numa sociedade monolítica, em que a uniformização das ofertas tanto na escala nacional como internacional levam a que tudo nos surja simplificado e pouco diferente, é uma das tarefas mais importantes para o tempo que virá. A diversificação dos produtos está longe de ser o equivalente de uma variedade de gostos. A concorrência numa lógica libertina de procura de um lucro máximo, no tempo e com custos mínimos, não pára de regredir e a concentração no aparelho produtivo e de difusão continua. Existe actualmente uma poderosa censura imposta pelo dinheiro de quem investe. Os favorecimentos descarados de um grupo detentor arrasta consigo todos os abusos de posição que resultam do domínio exercido nos circuitos de divulgação. Nunca o lucro teve associado a uma estética de curto prazo, como acontece actualmente, uma ideia eminentemente empresarial que se manifesta dolosamente desleal em relação a todas as formas de acção independentes. Esta nova prática monopolista vai ganhando uma posição preponderante no universo das produções culturais. Este sistema precisa de montar uma estrutura que fundamente o sucesso artístico e comercial com a irrupção de novas estrelas mediáticas. O artista e o negócio surgem-nos assim numa relação diferente de rentabilidade máxima onde o criador se aluga numa totalidade comercial, seguindo uma lógica que é a negação estrita da cultura. Quando chegamos a este ponto de destruição em massa dos valores e dos princípios, a troco de compensações incertas e irrisórias, percebemos que tudo isto faz parte de um enorme discurso sobre uma ideia de neoliberalismo fixado por processos de doutrinação colectiva, nas consciências do chamado grande público. A cultura vive cada vez mais do sofrimento de umas tantas vítimas anónimas que sucumbem diariamente, num falecimento desconhecido, contribuindo com o seu sacrifício existencial para a sua soberba realização. Gombrich dizia quando “as condições ecológicas da arte” são destruídas, a arte não tarda a morrer. Tudo está seriamente ameaçado enquanto vivermos nesta atmosfera de colapso eminente. A ansiedade causada por este estado de existência favorece o aparecimento de estranhos mecanismos de destruição. Parece que sentimos uma dispensa em seguir os mecanismos mínimos de vivência colectiva, abandonando ou suspendendo o contrato social regular de convivência pacífica com o outro. Passamos a olhar-nos doentiamente segundo uma lógica de medo individualista que nos impele para práticas egocêntricas de sobrevivência a todo o custo. Tudo vive sob a ameaça do que é comercial, pela dominação dos agentes que detêm o poder económico ou pelos seus empregados servis, pelos críticos que servem este sistema, pelos artistas que se vendem em time-sharing às várias organizações comerciais que os seduzem com sucesso e bem-estar. A arte está a ser transformada numa mercadoria e cada afluência a uma exposição, a um concerto, a um filme, o seu número de vendas, as críticas publicadas ou as suas incidências mediáticas, passaram a ser uma espécie de plebiscito ao grande público, certificando uma aparência de apreciação democrática para todo gosto. Quando falo sobre estas coisas tenho a noção que me comporto de uma forma a que facilmente se atribui o estado de quem exagera. Serei mais uma clássica personagem a figurar no museu dos profetas da desgraça. Fico numa posição extremamente difícil para estabelecer uma análise eficaz sobre este momento presente cheio de imensas contradições e penosas degradações. Cultiva-se no meio da catástrofe um ar de modernidade progressista, quando tudo se revela perigosamente retrógrado e duramente conservador. Estamos rodeados por uma retórica insidiosa, invasora e banal, que se estrutura na utilização abusiva de fórmulas curandeiras contra o mal das visões sociais cujo valor encantatório vai recrutando adoradores, vendilhões, empregados, vigaristas, corruptos, políticos, amanuenses da cultura e outros tantos doutrinadores e doutrinados. A descarga avassaladora da treta, mais ou menos, verbal está situada no cume de uma hierarquia onde nos surge como figura suprema deste desvario a imagem do “intelectual mediático”. Este incidente de ordem cultural tem vindo a ser orquestrado, como uma arte suprema do cinismo, que se revela na verdadeira face de toda a história da cultura ocidental, agora rendida à magnificência do lucro e dando total cobertura à violência que lhe está subjacente. Estamos perante um novo sistema de controlo sobre o que é pensamento e expressão.

Quando defendemos a nossa singularidade, estamos a defender os valores mais universais. 

 

 

(1) Marshall Berman, Tudo O Que É Sólido Se Dissolve No Ar, Edições 70, Lisboa 1989, pág. 154; 

(2) Ibid, pág. 145;

(3) Ibid, pág. 162;

(4) Ibid, pág. 333;

(5) James Slevin, Internet e Sociedade, Temas & Deabates, Lisboa, 2002, pág. 107;