Gestos locais, efeitos globais (*)


Ricardo Basbaum







b #05
Jun.03


Como o próprio nome indica, o grupo MAGNET (**) pretende exercer uma modalidade de prática coletiva a fim de fazer as coisas se moverem e modificarem. Isto é, instalar um campo de atração e repulsão, um núcleo magnético que concentre e produza forças invisíveis, mas que se tornam visíveis somente através de seus efeitos nas coisas, estruturas e pessoas (seres vivos). Certamente MAGNET é visto e sentido de modo diferente através de cada um de seus membros, que foram reunidos (assim imagino) por meio de um jogo de simultâneas coincidências e cuidadosas escolhas. O grupo compreende agentes em busca de vários tipos de conexões com o mundo da arte, revelando ricos padrões dissimilares de agenciamento em relação ao circuito, sejam centrípetos ou centrífugos. Mas agora em que somos afinal um grupo de trabalho, a partida já se iniciou e nós seremos deslocados no espaço e no tempo em conseqüência do impacto das ações que compartilharemos. É por isso que MAGNET me parece um tipo de agrupamento estranho e (talvez) mutante (logo, fascinante): cada um dos participantes carrega suas próprias experiências e referências, seus registros de disputas contra ou a favor de compromissos e comprometimentos locais (será que 'local' é apenas o lugar em que estamos agora? Existe um lugar ao qual 'pertencemos'?) – entretanto, que tipo de fantasia associamos à experiência 'global', enquanto realidade ainda a ser construída, inventada, avaliada, habitada? Como um grupo, MAGNET não tem outra escolha senão ocupar um espaço experimental; logo, MAGNET necessita desenvolver novas formações dos sentidos (para incrementar a percepção) e repertórios instrumentais (para desarmar armadilhas, criar abrigos).

É quase um consenso (além de um modismo) entre aqueles que trabalham com arte hoje, que muitos aspectos do jogo da arte têm sido disputados num teatro de operações global. Obviamente é possível perceber que muitas outras épocas e culturas dispuseram também, a seu modo, de uma amplitude de perspectivas, que transcendiam ambientes estritamente locais – a noção de 'global', portanto , sendo sujeita a inúmeras mudanças através dos tempos. Talvez pudéssemos pensar na palavra 'cósmico' como muito mais ambiciosa do que 'global', esta última enfatizando um tom realista e pragmático, a primeira implicando uma mistura espiritual com as coisas e seres vivos. De fato, se desde o século XVI o mundo ocidental tornou-se mais extenso com a inclusão das Américas, e desde o século XX o eurocentrismo está sendo desmontado pela inclusão das perspectivas de pensamento de diferentes culturas de cinco continentes, agora, no começo de um novo milênio, o mundo parece estar se movendo em direção a cada um de nós representado pela imagem de uma superfície que pouco a pouco se encolhe – uma conseqüência dos espaços telecomunicativos e de comércio que potencialmente interconectam todos os países já estruturados em rede (isto é, muito menos da metade do mundo). Podemos ver esta imagem como um construto tecnológico planejado para instalar-se no imaginário, marca suficientemente poderosa para seduzir uma audiência em busca do novo. Não é difícil de se supor este novo campo do global como tendo emergido em conseqüência do desenvolvimento tecnológico e comunicacional atingido desde os anos 1950, implicando em novas práticas perceptivas que transformaram as noções correntes de tempo, espaço e experiência, gerando uma nova textura sensorial. Se este espaço potencial está sendo colonizado pelas grandes corporações econômicas operando num mercado Global, isto não significa que este espaço as "pertença": de fato, estas companhias apenas se expandem o mais rápido que podem (o truísmo "tempo é dinheiro" nunca foi tão verdadeiro quanto hoje), na medida em que temem perder a competição por novas zonas de comércio. Mas é necessário trazer para um primeiro plano diversas estratégias de colonização do global que pertencem ao espectro de práticas culturais e artísticas, mostrando que diferentes estratégias de fixação nas regiões do global estão de fato acontecendo.

De modo a evitar um fácil mal-entendido, não é correto considerar o global como um "espaço" ou "território", uma vez que não possui concreção física: considerar que Londres ou Nova York são mais "globais" do que o Rio de Janeiro ou Mombay é tomar erradamente o conceito de global, colaborando ao mesmo tempo para torná-lo um elemento mais próximo dos grandes centros financeiros (isto é, fazer dele um item facilmente manipulável). Parece muito mais interessante tomar o global como um "campo", uma região habitada por padrões de relacionamento em que as representações simbólicas podem ser redesenhadas e rearranjadas. Não estamos distantes de um campo de batalha, para onde os grupos devem dirigir suas estratégias (não creio que existam aqui espaços para indivíduos isolados, no sentido tradicional: também a subjetividade precisa ser reenquadrada) e em relação ao qual devem ficar atentos. Vejo que Magnet deve conduzir a atuação "especializada" de seus artistas praticantes, curadores, trabalhadores e pensadores de arte para cuidadosamente desmontar certas estruturas do campo global com o objetivo de rearticular determinadas ferramentas operacionais válidas, como um modo de construir intervenções locais (lembre-se: o local pode estar em qualquer lugar). Assim, concebemos o global como um campo de relacionamentos em que atualmente ocorre uma batalha simbólica: a cada segundo são negociados sentido e representação, sendo que a arte tem um papel a desempenhar nesta cena – de ao mesmo tempo sensorializar e conceituar –, estabelecendo as condições para um campo experimental. O global, enquanto marca, é direcionado diretamente para a mente; mas, como um campo, volta-se para o exterior, formando um tipo de pensamento coletivo que conecta os corpos fisicamente espalhados pelo planeta.

Armadilha ou miragem: aquele que está desatento pode facilmente abrir porta e entrar, embora não exista espaço real do lado de dentro (não existe um interior!), nenhuma ação ali acontece, não haverá qualquer traço de movimento. A condição global é de pura atração, mas não produz nada a não ser efeitos. Nós repetimos: não se trata de um lugar a ser alcançado, mas de uma condição operacional a ser atingida, se desejamos intervir num certo cenário mundial. Trata-se de uma região a ser ocupada com uma série de ferramentas ainda em desenvolvimento: sensorializar o global equivale a problematizar o campo corrente da sensorialidade, discutir as políticas da percepção, coletar os efeitos desviantes conforme padrões de rearranjo das representações (ou o que chamaríamos sua crítica).

Não há sentido em trabalhar em relação ao global segundo uma estratégia de direção única: sendo este um espaço simbólico e lingüístico, todos os gestos que alcançam sua estrutura mas não têm conexões com seu lado de fora apenas desperdiçam energia em loopings cíclicos e auto-destrutivos. Por isso que insisto em escrever um roteiro que localize um lugar específico para ações dentro de um contexto local: a conexão local-global é a combinação produtiva na medida em que articula dois campos diferentes e complementares que podem produzir efeitos um sobre o outro. Operar localmente mas com um olho aberto para o cenário global é a fórmula que se provou valiosa (as grandes companhias o sabem muito bem) para tornar possível agir sobre as circunstâncias locais na roupagem de um significante móvel, um curinga político a trazer jogos imprevisível para a arena social. A tarefa estaria em deslocar este plano para as formas de ação características (e singulares) dos campos cultural e artístico (sem deixar de questionar o que particulariza ou não estas áreas), como modo de engajar-se num tipo particular de debate, no qual se acredita ser importante problematizar as experiências e discursos sensoriais, perceptuais e cognitivos. Magnet é um instrumento errante que procura engajamento neste combate.

Sob estas circunstâncias, os artistas brasileiros têm ativamente buscado, de diferentes modos, diversas atitudes de envolvimento em direção ao apelo de uma dinâmica global. Hélio Oiticica, por exemplo, viveu em Nova York por sete anos (1971-77), mas recusou-se a estabelecer ligações mais fortes com o circuito de arte local ou o mercado, preferindo cultivar uma permanente conversação com seus amigos no Rio de Janeiro, Londres ou Paris. Pode-se dizer que naquele momento a cultura brasileira era para ele uma referência deslocada, quase-mítica, presente como sub-texto na maioria dos seus escritos de então: a recusa em jogar o convencional jogo da arte de NY era mantida através de seu esforço consciente de conectar seu trabalho com certas referências particulares na cena internacional (John Cage, Yoko Ono, The Rolling Stones) sem contudo abandonar os traços daquilo que havia inventado no Brasil – que o mundo só descobriria vinte anos mais tarde, dez anos após sua morte. É possível ver esta atitude como uma resistência ativa contra um 'internacionalizacão natural' de seu trabalho: se deve haver uma arena internacional ela deve levar em consideração um modo de pensar diferenciado, uma outra atitude sensorial, uma política menos moralista do corpo e da sexualidade, etc. Uma cena completamente diferente foi construída nos anos 1980, quando o circuito de arte brasileiro (como outros circuitos de arte ao redor do mundo) se beneficiou do fácil fluxo de dinheiro vivo da era conservadora Reagan-Thatcher e implementou um ambiente de galerias que iniciaram uma eficiente conexão internacional com o mercado de arte dominante. É possível dizer que estas ligações estavam já consolidadas nos anos 1990, quando algumas poucas galerias conseguiram administrar sua participação regular em feiras de arte e eventos, vendendo trabalhos para colecionadores internacionais e museus. Pode-se ver que a arte brasileira de alguma forma entrou para o teatro global da arte pela porta da frente, abraçando padrões de trabalho que trouxeram credibilidade para todo um conjunto de profissionais de arte – de artistas a curadores, críticos de arte e editores, galeristas e colecionadores, etc: o completo rearranjo interno assim produzido não pode ser medido facilmente, mas sem dúvida que uma decisiva atualização do circuito ocorreu, em parte como conseqüência dos novos e influentes acordos de mercado obtidos, em parte como resultado de uma atitude mais acurada em relação às linguagens de arte e suas mediações. As questões mais óbvias e quase ingênuas que deveriam ser formuladas sobre este processo de mercantilização são: tendo em vista a arte e a história da arte brasileira e sua representação social, será a arte exportada pelo novo mercado de arte brasileiro representativa de que tipo de debates? Devido às fortes desigualdades econômicas que estruturam a economia brasileira e ao péssimo e desastroso índice interno de distribuição de renda, será que o mercado de arte brasileiro espelha estas mesmas características, fracassando na distribuição do capital simbólico que produz? De que modo é possível hoje falar de uma "arte brasileira", na medida em que sua mobilidade é determinada principalmente pelo fluxo de capital e não pelas questões levantadas pela produção mesma, mantida numa posição secundária? Dada a novidade trazida por sua presença num contexto global da arte, qual foi o impacto desta condição no circuito de arte brasileiro do final do século XX?

O tecido local da arte e da cultura brasileira é bastante mais complexo do que isto, revelando diversos esforços de engajamento dentro da cena contemporânea que abordam o contexto de modo mais crítico, isto é, evitando aceitar seus atuais contornos como naturais, fixos e estáveis. O forte contraste entre a configuração de um circuito de arte que já construiu seu acesso ao teatro global da arte e sua realidade interna de grandes dificuldades econômicas retrata uma situação em que os principais elementos que se destacam são basicamente orientados em direção ao mercado, deixando quase nenhum espaço para posições que levem em conta aspectos do debate crítico e cultural ou estratégias de resistência a este mercado. Entretanto, alguns artistas têm assumido a necessidade de organizarem-se de modo a se capacitarem a desempenhar um papel mais decisivo nos termos de uma política das artes. Graças (mas não exclusivamente) às iniciativas de artistas, os últimos dez anos revelaram um intenso trânsito de informações e experiências entre diversas partes do país, em que grupos assumiram as tarefas e deveres estratégicos da auto-organização. Muitas destas iniciativas são efêmeras, mas demonstram uma consciência diferente – atenta à importância dos processos de mediação na construção das linguagens artísticas – em relação ao circuito de arte. Uma revista como item (publicada no Rio de Janeiro), grupos como Visorama (Rio de Janeiro), Arte Construtora (São Paulo/Porto Alegre), Torreão (Porto Alegre), Alpendre (Fortaleza), Agora/Capacete (Rio de Janeiro), Camelo (Recife), Linha Imaginária (São Paulo) e Atrocidades Maravilhosas (Rio de Janeiro) – entre outros – têm estado ativos na tarefa de inventar novos caminhos para o trânsito do trabalho de arte e seus conceitos: tais esforços provaram-se efetivos na produção de mudanças. Certamente nada disto seria possível sem os celebrados encontros (colisões?) que o mercado local estabeleceu com a cena internacional desde meados dos anos 1980: a entrada no teatro global (típico da nova ordem econômica emergente do final do século XX) produziu no cenário da arte brasileira uma forte conscientização acerca de quais eram as reais condições locais quando contrastadas com as promessas de uma dinâmica global e suas recompensas.

Trabalhar sob circunstâncias locais mas estabelecendo relações entre uma rede global: este é talvez o primeiro passo estratégico que grupos independentes de artistas aprendem, como meio de tornarem-se menos amarrados às conexões locais, assegurando uma mobilidade política necessária para produzir mudanças no ambiente em que atuam. Magnet pode ser efetivo neste ponto: constituir um campo em que os problemas em torno do local/global sejam constantemente criados e desconstruídos, ajudando a estabelecer um conjunto de instrumentos para intervir numa estrutura global – contaminando com inesperados vírus e memes as áreas de apoio lingüístico, simbólico e lógico que a informam e constituem. Imagino o quão útil Magnet pode ser enquanto estrutura conectada a certos pontos estratégicos da produção e discussão de arte, em torno dos diferentes circuitos locais, através de pessoas trabalhando como agentes ativos envolvidos dentro de demandas concretas da arte e da cultura.

Magnet é a partir de agora um organismo vivo composto das partes de dez pessoas diferentes; ninguém sabe para onde está indo ou como irá se comportar, ou ainda para qual direção nos levará. Como um corpo coletivo, é muito maior do que cada um de seus membros e portanto cada um de nós deve ouvir o que ele nos diz para tentar experimentar o que pode trazer para nós em termos de uma diferente percepção do mundo, das novas interfaces sensoriais que estabelece com as coisas. Magnet foi já concebido como um dispositivo conectado com nossos corpos e mentes: uma coisa sobre a qual devemos pensar é por que, neste momento particular, um grupo de pessoas foi reunido para trabalhar sobre algo que não pode exatamente delinear o que será – Magnet está localizado no âmbito dos gestos potenciais. Quantos projetos foram já concebidos enquanto estratégia aberta e cujos objetivos são sentidos como pistas liminares que atraem os participantes para o centro dos eventos tanto quanto para suas bordas? A própria palavra 'arte' está aqui sob ataque, e a proposta de Magnet não acontecerá se nós não evitarmos (cuidadosamente) um amplo conjunto de certezas que utilizamos quando nos referimos a ela. Sim, é um jogo interessante: atração x repulsão. Se evitarmos fixar-nos em uma ou outra posição poderemos abordar a economia entre ambas as forças como a dinâmica que nos conduzirá para algum lugar.

* Publicado originalmente em inglês, com o título de "Local gestures, global effects", em Magnet #1 - non-place, Londres, inIVA, 2001. Esta versão em português foi incluída nas coletâneas Mídias e Artes: os desafios da arte no início do século XXI, Anna Barros e Lucia Santaella (Orgs.), São Paulo, Unimarco Editora, 2002, e Políticas públicas de cultura do Estado do Rio de Janeiro, Roberto Conduru e Vera Beatriz Siqueira (Orgs.), Rio de Janeiro, UERJ, Rede Sirius, FAPERJ, 2003.
** Grupo internacional de trabalho formado em fevereiro de 2001 por iniciativa do International Institute for the Visual Arts (inIVA, Londres), composto por artistas e curadores de diferentes países. O objetivo deste coletivo é discutir as práticas artísticas contemporâneas sob a perspectiva da globalização. Participantes: Clifford Charles (África do Sul), Gary Stewart (Inglaterra). Gilane Tawadros (Inglaterra), Guillermo Santamarina (México), Hou Hanru (China), Michelle Marxuach (Porto Rico), Ricardo Basbaum (Brasil), Steve Ouditt (Trinidad Tobago) e Suman Gopinath (Índia).

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MAGNET-manifesto

(Texto assinado pelo grupo MAGNET e publicado em Magnet #1 - non-place, Londres, inIVA, 2001.)

MAGNET é um grupo de artistas e curadores de diferentes partes do mundo.

NÓS queremos produzir um campo de trocas em bases globais, onde diferenças locais possam ser discutidas, confrontadas e problematizadas.

LOCAL é, para nós, uma palavra de múltiplos sentidos, que se altera de lugar para lugar, de contexto para contexto.

GLOBAL é, para nós, uma condição contemporânea complexa, envolvendo aspectos sociais, econômicos e políticos. NÓS não tememos assumi-la também como um espaço prazeroso para o desenvolvimento de contatos e a implementação de redes.

MAGNET atua entre o desenvolvimento das linguagens artísticas e suas mediações, deslocando-se através daquela espessa membrana que impregna de coloração política a dinâmica entre arte e vida: MAGNET age na (micro)política da arte (em sentido amplo).

NÓS não somos representantes de nossos países mas agentes que funcionam como pontos nodais de várias redes, conectando os contextos locais e globais. Acreditamos que MAGNET pode desempenhar um papel transformativo junto ao circuito de arte – extensões incluídas.

MAGNET enquanto grupo é uma entidade orgânica que ultrapassa seus membros individuais, uma forma de vida em si mesma, com comportamento não-linear e imprevisível. (Nós perguntamos: onde MAGNET irá nos levar?)

MAGNET irá produzir uma revista e um website como passos iniciais em direção ao estabelecimento de ferramentas regulares para apoiar a continuidade desta discussão: "Como o fenômeno da globalização está mudando a natureza da ação artística e suas mediações?" Queremos desempenhar um papel ativo neste processo.


MAGNET é Clifford Charles, Gary Stewart, Gilane Tawadros, Guillermo Santamarina, Hou Hanru, Michelle Marxuach, Ricardo Basbaum, Steve Ouditt e Suman Gopinath

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