Self Made Jazz ou "a noiva nua despida pelos seus celibatários"

Ivo Martins







b #01
Nov.02



Uma cultura anti-omnívora

Nunca saberei se estão, neste momento, reunidas as condições que possibilitem afirmar, perante aqueles que desde muito cedo se habituaram a esperar pela última palavra para só depois realizarem o seu processo de aceitação do óbvio, que o mundo em geral e, neste caso particular, a música e o Jazz cabem na palma da nossa mão. Uma pequena parcela das actividades criativas mais ou menos “around” permitem alterar, modificar, desenvolver, alastrar, alargar...ampliar todas as variáveis que curiosamente funcionam num processo permanente de miniaturização global. Tudo se transforma em acesso rápido, o instantâneo impõe a sua metáfora polar, o directo suscita a suavidade da imobilidade caseira e o fácil torna tudo mais apetitoso, deixando de fora, como idealizações do “campo” de actuação, as manifestações visíveis em relação às quais os pequenos e reduzidos territórios/circuitos que se instalaram em Portugal funcionam como o natural prolongamento de uma endémica pacatez nacional. Quando se tenta perpetuar uma visão insistentemente rotineira, quando se verifica uma melhoria sensível dos vários condicionalismos existentes, o seu destino fatalista continua, apesar disso, intocável.
Vão perceber (ou começam já a entender) que a tarefa de solucionar contradições, num meio em que os sistemas de produção, comunicação e transmissão permitem cobrir qualquer acontecimento de um lado ao outro do mundo e informar à velocidade da luz todas as pessoas, determinará novas conjunturas de realização do acto criativo. O Jazz como processo de interacção cultural passou a fazer parte do nosso quotidiano exausto de palavras e saturado de conceitos. Desta forma, quando procedemos a uma analise explicativa sobre o que se passa em Portugal encontramos sinais e avisos sobre as inúmeras colisões susceptíveis de serem consideradas interessantes. Teremos, então, de compreender que perante uma atmosfera rarefeita e pobre nos vários elementos que a compõem não se potencia um devir cultural consistente, nem se permite conhecer no tempo e no espaço o grau de domesticação a que estão sujeitas muitas das suas elaborações. Uma profusão em série, uma linha de montagem, uma dimensão estratégica, uma dependência perante o poder das novas tecnologias comprovam que a geografia cultural não reflecte curiosamente a réplica do «quanto mais mundial é a informação, mais essencial se torna a noção de ponto de vista». A recorrência dos relatos, bem como a tentativa de fazer passar uma imagem suave de um Jazz que nos parece cada vez mais inverosímil, para não dizer irreal, faz surgir em torrente o exercício de poéticas excessivas que nada exprimem.

Uma realidade feita dos interesses associados ao comércio, à indústria, aos “media”, ao público/audiência/consumidor, ao número como seu argumento, ao seu poder fetiche e a outros acontecimentos audiovisuais próximos é sinal evidente de uma fachada e, necessariamente, de bastidores. O culto de uma modéstia mais ajustada nas alusões aos melhoramentos e às vitórias impediria preocupações estéreis com o vai e vem fútil de palavras viciosas e transformaria os agentes interventores, aos quais cabe propiciar a realização daquela espantosa atitude reflexiva segundo a qual a estética seria a ética do futuro, no meio deste crescente “salve-se quem puder” oficial.


Na terra dos sonhos

O facto de se encontrar implantado no terreno um sistema de informação e divulgação do Jazz erigido num regime restritivo que, pelas várias formas visualizadas, somos obrigados, por razões de ordem prática, a definir como unipessoal, pode, desde logo, fornecer explicações sobre o significado do processo de formatar ideias e representações dos acontecimentos exteriores. Não é um exercício fácil. Vamos pressentindo o peso de uma subjectividade, acompanhada de todos os seus riscos, quando consideramos as avaliações levadas a efeito e começamos a pensar nas descrições dos efeitos nefastos: a falta de dados objectivamente disponíveis sobre o público alvo; a existência de uma atitude de carácter genericamente defensiva de todos os que escrevem, cujo conteúdo se inscreve no pressuposto de que existe uma profunda concepção monolítica sobre a prática divulgadora, tida por única, verdadeira e absoluta.
O significado de uma atitude historicamente empenhada e militante, para além de ser ineficaz e reverberativa, dificulta as manobras de se estabelecerem todo o tipo de parâmetros confrontadores. Poderíamos comodamente invocar a falta de material argumentativo nas situações que se fixam na velha querela tradição/modernidade, o que iria impedir e prejudicar, de um modo irreversível, o desenvolvimento de um contraditório aberto e plural. Quando se lê no editorial da revista “Jazzman” de Abril/99 que só 5% dos gostos musicais franceses se inclinam para o Jazz, surge imediatamente uma pergunta inevitável e essencial sobre o que se passa em Portugal.

O culto do medo

Em todos os processos de compreensão realizados com consciência das inúmeras lacunas de conhecimentos somos permanentemente culpados; não estamos, porém, condenados a abandonar, por isso, os impulsos de uma procura incessante. Todas as pessoas que, no enredo dos vazios fáceis, ficam expostas à prosápia de um discurso mais ou menos nómada, conseguindo somente agir segundo modelos pré-fabricados de razões, são cúmplices da confusão que é gerada por um imenso “vácuo” – o exclusivo da representação é um suporte poderoso para que tudo se mantenha inalterável. Como influenciar de forma efectiva qualquer tipo de alteração de conjuntura, quando o mais pequeno gesto ético sobre a liberdade das formas de pensar, que devia fazer parte integrante de toda a estrutura actuante, está suprimido em favor de desfasamentos inúteis, de fracturas débeis, de um aleatório inconsistente e de uma radicalidade demasiado banal? Quando as defuntas “vanguardas” se apoiam no pseudo-extremismo histórico, no qual ressalta a figura do especialista ou do académico, com as imagens defuntas das revoluções passadas a servir de estandarte, tudo passa a ser superficialmente justificado em nome da necessidade de uma competência e de uma hierarquização.

O nosso “campo de análise” caracteriza-se pela existência de um grande número de atitudes em constante adaptação, um processo de fácil reformulação discursiva que pela sua quantidade e qualidade geram cautelas quanto ao grau de autenticidade. O permanente movimento “todo o terreno”, no qual se avança e recua segundo as leis de uma mecânica mais ou menos interesseira, desculpável nalguns casos, sofrível noutros e numa boa parte medíocre na “corrupção da pobreza de espírito”, mais não fazem do que reforçar e certificar a ideia de que a verdadeira autoridade se assume na eterna glória do “sabedor” – espantosa figura de todas as histórias, abstracção inútil que contribui para soterrar, nos escombros de uma nascente sociedade de massas consumista e individualista, todos os progressos de representação das minorias e do velho saber independente, generalista e aberto. Temos, por isso, de compreender o aparecimento de algumas interpretações pessoais, que, sendo extremas e potencialmente insignificantes, se determinam como uma consequência natural do espírito simplificado e risivelmente situacionista. A carga voluntarista e militante que transportam favorece a perpetuação do sistema dali resultante, o qual está organizado e sobrevive à custa do incremento das dramaturgias pessoais. Estas turbulências nos discursos dão conta de tudo o que de mais importante urge preservar, em nome da manutenção do espaço de poder que se encontra usurpado e preenchido. As velhas mentalidades simetricamente “clonadas”, ao respirarem insistentemente o ar viciado de todos os regimes fechados, fabricam com escrúpulo as irritações, as alergias e um mal estar evidente e conivente numa matéria viva reciclada que alimenta o ciclo de um conceptualismo constantemente negligenciado.

O saber ocupa espaço

É também conhecida a tendência para valorizar excessivamente o lado individual. Mas se o desenvolvimento desse factor hedonista é um sinal dos novos tempos, nos quais a interactividade do processo comunicativo propicia o avanço inexorável do sistema “consumo/massas”, ele não pode ser considerado uma alternativa integradora que projecta no futuro a credibilidade do emocionalmente sentido. Centrar em tudo o que nos rodeia o monopólio da paralítica função populista será, desde logo, votar ao estado de selvajaria corporativa/classificadora toda a criatividade nascente, na qual, segundo uma velha sociedade do espectáculo, a monumentalidade das adjectivações e dos acontecimentos cumpre o seu desígnio.
O reconhecimento é o abastardar de todo o processo criativo; as manobras incessantes de interesses que padecem de um atraso estrábico/centralista crónico, próprio do tempo em que se acreditava na verdade de uma só realidade, fez do “gheto artístico” o novo espaço concentracionário, por excelência, o condomínio fechado dos instalados, retirando profundidade e substância à arte e ao Jazz. No presente, apreendemos apenas uma emanação desgastada da sua ingenuidade primordial. Se o mundo se desintegra e reintegra segundo um escalonamento intensivo de explorações, a arte tem de conter em si todos estes momentos – recusa e aceitação, fuga e confronto, crítica e elogio, sofrimento e suavidade...
O Jazz tem de saber movimentar-se no meio de todos estes problemas e absorver deles os estímulos que lhe darão uma ordem ou uma desordem. A escolha do caos pode ser tão pobre e patética como a escolha da estrutura absolutista. Ambas sobram nas interrogações duvidosas e pessoais de tudo o que seja apenas dar uma simples explicação ou realizar uma simples escolha. «A liberdade de informação é a condição do estatuto do cidadão. Hoje em dia, a desproporção estabelece-se entre os dois: o cidadão sabe de tudo acerca de tudo. Muitas vezes o cidadão ocidental é um gigante em matéria de informação e um anão em matéria de acção».

Fechar caminhos

Embora o atrás chamado contexto unipessoal possa ser entendido segundo vários pontos de vista, apresenta-se sempre como uma expressão extremamente redutora pois contém o efeito perverso de ignorar as contradições ligadas ao seu próprio poder. Deseja-o, procura-o, goza-o, joga com ele… mas não está interessado em analisá-lo nem em assumi-lo. Pelo progressivo distanciamento em relação aos outros – origem da sua legitimidade – adquiriu uma espécie de imunidade formal, na qual as consequências das suas opções deixaram, pura e simplesmente, de ser tidas em conta. Quando detectamos uma clara diminuição da diversidade de opiniões e se lhe acrescentamos todas as definições, etiquetas, qualificações, comparações, palavras e nomes usados, numa permanente obstinação classificadora, que justifica a “overdose” de informação universal pela necessidade de encontrar uma síntese explicável da realidade, o aparecimento das muitas incapacidades perceptivas decorre dos próprios limites de todas as utilizações das palavras. Não se pode nem se pretende explicar muito mais do que uma concorrência desenfreada entre todos os media no regime do seu próprio enclausuramento, no qual as expressões utilizadas acabam por se tornar indiferentes, anódinas, inertes, elementares.
Desejamos chamar a maior atenção para o “campo” como o local de vida existencial do Jazz, com os seus inúmeros factores internos e externos, sociais, políticos, económicos, culturais, artísticos, estéticos, etc. e pretende-se realçar a salvação do evidente e hipotético congelamento das liberdades de pensar – dar a palavra – e generalizar a multiplicidade de expressões, sem resvalarmos na direcção de uma prática abusiva, apoiada pela retórica despida de sentido crítico, debaixo do manto assustadoramente inocente de uma poética irritante ou da grandeza de um “vanguardismo” já cadáver. A fantasmagoria ao serviço das massas, que criamos na falsa possibilidade do seu rejuvenescimento, leva à falência de compreensão do actual espaço intersticial de livre criação que nos resta explorar.

Os mesmos são sempre iguais

Nenhum dos inúmeros agentes situados neste “campo” permanece totalmente distante, imune ou indiferente aos movimentos de interesses, ou às suas contradições, que se desenvolvem e se movimentam no interior de uma superfície ondulante. Os vários confrontos e colisões que inevitavelmente acontecem são um sintoma de permanente defrontação. O simples facto de alguns modelos de discurso estarem desfasados da realidade que nos cerca evidencia pretensiosas formas de análise que, uma vez vindas a público, não escondem as irrelevâncias nem o supérfluo do seu invólucro “ego/celofane”. Temos de admitir a existência de um sistema complexo e compulsivo, estruturado num edifício cego e insensível perante os valores artísticos. As afirmações, as negações e as omissões desculpam-se pela minúscula diversidade de ideias e de pontos de vista e, muito raramente, por conceitos e análises repartidas por um núcleo restrito de a(u)ctores que reproduzem uma “imagem virtual” para o Jazz. O “campo” torna-se, deste modo, um espaço densamente concentrado sobre si próprio, um interactivo circuito por cabo onde alguém constantemente se filma e para sempre se torna uma imagem de vídeo repetida até ao infinito. A variedade de concepções, de géneros, de estéticas, de ideias e de visões possíveis que os monitores por toda a parte apresentam sujeitam-nos a sobreviver no quadro austero de um aborrecimento, um minimalismo do gosto, sem qualquer referência à liberalidade estética (“Big Brother”). O uniforme vai sucessivamente tomando as mesmas formas, que, porque iguais, são demissionárias, acumuladas e exasperadas de tanto retorno infrutífero. Ficamos sujeitos ao exaustivo e por vezes ocioso mostruário de atitudes e comportamentos que, pela sua imobilidade imitadora, pressagiam um sinal de crescente bloqueio receptivo. O restante é constituído por umas tantas preocupações geradoras de um tédio sinuoso que se banaliza e distrai no exagerado esmero “novo rico” da espectacularidade crescente. As representações propostas em livre concorrência de mercado – o protótipo de uma sociedade “prestamista” – não possuem mais do que a premência de inovar a todo o custo, sem que esse interesse mais não seja do que a consequência de um mero efeito recreativo.

O país do maravilhosamente opaco

A sua verificação concretiza-se num latente sintoma de descrença que se reduz ao que não se sabe explicar. As razões e as causas, confluentes numa árida imagem do Jazz em Portugal, sem vida activa, cheia de estereótipos de linguagem, com pouquíssimos pontos de interesse criativos e extremamente desgastada nas emanações narrativas, são como pequenas amostras gratuitas de espaço vital que terminam o seu prazo de validade no segundo seguinte da sua existência. A atmosfera vivencial encalhou nos baixios das ideias feitas e dos cultos reverenciais às personalidades artísticas, não se vislumbrando para uma proximidade no tempo e no espaço qualquer mudança significativa. Entretanto, continuamos a sentir o desinteresse pela mais pequena estratégia concertada entre os vários intervenientes e agentes (músicos, produtores, festivais, empresários, críticos, jornalistas, divulgadores, promotores, etc.) que, fixados no terreno, se movem de forma centrípta, funcionando segundo lógicas que por vezes reflectem propositados desajustamentos competitivos e pessoais visivelmente absurdos. Lugar comum: afirmam estarmos todos apostados em divulgar, promover, incentivar o gosto e o interesse pelo Jazz.
No meio de tantas palavras e actos banais, todos permanecem gloriosamente isolados na arena de um quotidiano anquilosado de tanta vulgaridade cultural. É incompreensível que num “campo” tão reduzido de alternativas tenhamos ainda de suportar, no domínio do Jazz, o impingir permanente de uma igualdade normalizadora, estúpida e debilitante que se reduz a um padrão global de procura extremamente pobre e míope no que se refere à amplitude dos horizontes e dos estímulos de reflexão propostos. Parece que, pelo menos na aparência, o ar pacifista e pouco aberto do “campo” jazzístico não é, infelizmente, na sua prática, mais do que o prolongamento de um império em que o comercial/consumo, o individual/massas e a consagração do artista como veículo de uma consensualidade maioritária, logo democrática, vão sendo estruturados na desconsideração generalizada de uma cultura que passou à categoria de imagem-produto a sub-produto. Este modelo transmite-se através da permeabilidade da desinformação que sobrevive à custa da apatia e da falta de intervenção dos seus receptores. Recusa-se o exercício reflexivo, apaga-se com a utilização de uma visibilidade intencionalmente excessiva qualquer espécie de movimento “anti-poder”, suprimem-se todas as posturas “contra”… e uma dita “vanguarda” que se propõe cheira a academia e conformismo que tresanda – os anos de vanguarda persistem agora numa versão mumificada, como prova irrefutável de uma ignorância consuetudinária sobre os factos fundamentais do modernismo.

Afigura-se, para aqueles que pensam na reduzida dimensão do nosso país, que este jamais se revelará suficientemente atractivo para os investimentos das grandes organizações empresariais, já que, nesse sentido, nem sequer possui uma escala mínima adequada, quando se começa a observá-lo pelas componentes económico/financeiras ou numa qualquer perspectiva comparativa em relação ao restante mercado internacional. Passam a estar criadas as condições para que não possamos encontrar as culpas de quem, pela sua inacção, contribui até indirectamente para esta falta de confiança generalizada. «Ninguém acredita em nada». Se continuarmos a persistir nestes equívocos, seremos para sempre um “semi-campo” subalterno, menor, limítrofe e periférico onde, em nome de um ideário da concorrência provinciana e paroquial, o parceiro do lado vai imediatamente e de soslaio imitar e “sacar” a ideia daquele que minutos antes tinha displicentemente menosprezado. Manipulam-se ofertas em “cachets” e exclusivos, através de valores que se situam acima das realidades do nosso mercado (provocando especulação e concorrência). Estes actos artificiais, que reflectem o estado das nossas intenções, não podem explicar totalmente o nosso fiasco cultural nem jazzístico quando fazemos uma visão comparativa relativamente a países de dimensão próxima da nossa e também localizados na dita “Europa” abreviada e comunal; e percebemos melhor como é que os receptores de toda a cultura continuam a ser tão ostensivamente maltratados pelos abusos de bastidores e pela indolência generalizada dos seus curadores.

Divisórias e contradições

Não se conhece no mercado nacional um número de vendas de discos de Jazz. Estes resultados, que permitiriam considerar a diferença entre um best-seller e uma obra de pesquisa e também tentar descobrir qual o verdadeiro perfil do público comprador dos produtos culturais nesta área específica, não existem. A necessidade de ter acesso a este tipo de informação tem aplicabilidade no que se refere ao “campo” das artes em geral e, em particular, ao Jazz. A falta de um todo de conhecimentos sobre o perfil do público/receptor com as respectivas alterações, flutuações e mudanças vai traduzir uma manifesta incapacidade de saber compreender e saber estar no seu meio. Os lapsos são evidentemente negativos quando se perspectiva um trabalho de avaliação útil que, pelas limitações de conhecimento a que tais lapsos dizem respeito, ficará para sempre a rondar a pouca fiabilidade e a limitar desde logo muitos dos pontos sensíveis de actuação que poderiam e deveriam ser explorados no futuro.
Se soubermos que a cantora Cassandra Wilson vendia em média cerca de sete mil exemplares por cada publicação na JMT e que agora vende trezentos e quarenta mil por cada edição na Blue Note, esta informação, tal como a mudança que lhe está associada, tem de ter obrigatoriamente um significado e deveria induzir vários tipos de análise. Julgo que todo o tipo de considerações ouvidas aos empresários estrangeiros sobre o peso relativo do mercado do Jazz em Portugal (e também do espanhol) podem ajudar a perceber com mais clareza e precisão a verdadeira grandeza jazzística nacional. Em relação às marcas e respectivas vendas de discos, não existem informações bastantes mas é razoável admitir que o panorama será de certeza o mesmo, embora os contactos e as informações sejam insuficientes e muito incompletas. A quantidade e a qualidade das pequenas distribuidoras independentes e as representações das grandes marcas em território nacional são um sinal evidente da nossa dimensão e podiam ser objecto de apreciações interessantes.
Neste sentido, pode questionar-se quais devem ser as atitudes mais adequadas e quais devem ser as estratégias prioritárias em relação ao panorama existente.

Salve-se quem não puder

Comecemos por aceitar como razoável, normal e imprescindível que os interesses sejam organizados num “campo” onde intervêm vários agentes. Estes lutam e jogam entre si, convocando pontos de vista influenciados e influenciadores, motivados e motivadores segundo vários tipos de estímulos comerciais, sociais, políticos, artísticos, filosóficos, históricos, culturais, jornalísticos, pessoais etc., os quais têm de ser considerados como parte integrante, normal e inerente do fluir regular do próprio “campo” em livre deslocamento de ideias. Daí que quando todos procuram retirar as melhores vantagens de cada uma das suas actividades não possamos considerar estas atitudes como situações do tipo simplista ou conformista. A tirania do acontecimento, a ausência de distanciamento, a lógica de scoops, os efeitos perversos da concorrência, a falta de trabalho, a ausência de perspectiva da actualidade, o excesso de história, a resistência ao conhecimento, o peso demasiado grande do sucesso, a análise ou o exibicionismo narcisista são mecanismos de estruturação que têm de ser encarados como um conjunto de dados motivadores perfeitamente compreensíveis e normais, podendo influenciar quem actua, trabalha, estuda e investiga no “campo” jazzístico. Mas quando queremos compreender a “cena” em Portugal, lamentavelmente, percebemos que ela está arreigada numa prática profundamente sedentária e conservadora, a qual se revela através de uma única camuflagem de expressão.
Sempre existiu um “círculo de luz” a iluminar certos aspectos da realidade em detrimento de outros. Poderemos eventualmente pensar que tudo o que é visível é de facto importante e que tudo o que é importante será automaticamente mediatizado. Se existe um conjunto reduzido de ideias que se organizam na hierarquização de umas tantas concepções de “salão”, as quais se deslocam lentamente pelo meio de outras manifestações com claras conotações de compromisso social, existem também as que se reduzem a uma antiquada visão/síntese de uma sociedade politicamente ideal, organizada em razão das semelhanças e das igualdades. Entre estas duas situações limítrofes, ficam ainda em aberto todos os interesses de reconhecimento, de consagração e de autoridade que se apresentam em visões recuperadas e recicladas do tipo “pós-burguês” (a glória dos novos decisores), as estratégias comerciais, as conjunturas económicas, sociais, as validações académicas, o sistema das políticas, o “star-system”, as estéticas, as razões artísticas (arte pura versus arte “comercial”)...
O que se tenta deixar transparecer é que as estruturas criadas representam a realidade e, na falta de variedade dos movimentos e de confrontos verdadeiramente interessantes, emerge a natural pequenez de umas tantas atitudes que se protegem mutuamente por entre a vacuidade de polémicas cinicamente estéreis. Ressalta então como inevitável o fracasso de uma reduzida tentativa de produção de ideias verdadeiramente originais. Concedemos a este pequeno grupo demasiada legitimidade, daí resultando uma “luminosidade” paradoxal que se foca apenas no número limitado de problemas e de interlocutores que, por entre tantos outros acontecimentos de menor alcance, adquiriram e gerem um espaço. Teremos pouco para dizer sobre este modelo que foi sendo aperfeiçoado no decorrer dos últimos anos, já que o julgamos cada vez mais afastado do limiar mínimo de actualidade e extremamente longínquo de uma sagacidade prospectora que torna os jogos de “poder” e dos interesses em momentos superiores de referência histórica e criativa imprescindíveis ao seu devir. Quando se projectam vivamente no futuro, transformam-se numa parte integrante da vida de todas as artes; as correntes, os manifestos, os projectos, os movimentos, os novos estilos, os géneros, a improvisação merecem, requerem e exigem, em nome das diversas qualidades que possuem, muito mais do que uma cultura da simplicidade ingénua.
As palavras semanais de informação mediana, actos cheios de sentimentos de troca e por vezes eivados de atitudes de desmesurado protagonismo são insuficientes para sairmos deste impasse, do marasmo da apatia e do tédio do quietismo em que nos encontramos. Querer começar a empreender outro tipo de atitudes e comportamentos significa reconhecer que só através da inevitabilidade das pressões e dos confrontos de vária ordem entre a diversidade dos interesses que os agentes representam é que a sua acção se torna útil e justificada. Contudo, certas posições não podem exprimir nada mais do que um excedente da necessidade de auto ou legítima defesa e/ou de afirmação eminentemente pessoal e subjectiva. É evidente que não se deseja e nem se pode retirar do cenário do nosso quotidiano as várias expressões que actualmente são dominantes – a sua razoável legitimidade deve ser preservada – mas teremos de ponderar que se reverifica uma notória falta de expressão relativamente aos outros modos de pensar e sentir o Jazz. Os défices da sua visibilidade, os desequilíbrios equitativos quando tais actos são analisados à luz dos fins e dos meios usados e quando se têm em conta as fragilidades já detectadas do “campo” do Jazz português, a meu ver, ajudam a configurar o quadro expressivo, de que ninguém representa ninguém...


A idade dos “porque sim”

Reconheço que quanto mais se sabe que nos últimos anos se tem verificado um assinalável incremento no número de festivais, de concertos e de oferta de discos de Jazz, tanto mais necessário se torna averiguar o porquê de esta música ter a dimensão que tem (um espaço a considerar), em quantidade e qualidade, nos diversos meios de comunicação social, nas estratégias editoriais, nos vários actos de promoção e de divulgação. Também se poderá questionar uma potencial conquista de mais espaço visual (questionando, todavia, o grau de compatibilidade entre a imagem e o Jazz), porventura fomentadora de uma presença mais visível junto das pessoas, bem como um clima de debate e de ampla exposição de ideias em relação ao público, muito principalmente o mais jovem, capaz de tornar o “campo” num meio de acção expressivo e criativo mais aliciante e aberto.
Sem interlocutores não existe a possibilidade de se estabelecerem diálogos profícuos, restando apenas o ruído anestesiado de um fundo imenso de monólogo convergente, cujos efeitos limitadores defensivamente fechados temos a obrigação de indicar e dar como inevitáveis. Nas experiências vividas, sentimos (e lamentamos) sensações habituais de perda sem retorno, rastos de sentimentos desencontrados em oportunidades perdidas que se deixámos escapar por desiludidas atitudes de desperdício que constantemente nos restrigem.

Aos costumes disse...

Não pode ser suportável que se publiquem regularmente umas tantas palavras acerca de Jazz, acompanhadas de esporádicas audições de música, quando as finalidades destas não ultrapassam circunstancialismos informativos ou historiadores (de histórias e de estórias…). Tais narrativas, cujo grau de ficcionalidade permanece em aberto, nada contêm de relevante para que possamos considerar-nos na presença de uma verdadeira e operante crítica.
As palavras lavam o chão pesado da bonomia que se estende pelo reduzido habitáculo de onde uns tantos comandam a nave numa deriva demasiado continental e localizada quando há já muito que a música se emancipou e cada vez mais se orienta para uma escala onde «a alta fidelidade e a alta definição da imagem contribuem, de facto, para modificar profundamente a natureza do relevo (sonoro, visual...), relevo que não é mais do que a maior realidade das coisas percebidas relevo espaço-temporal que condiciona a nossa apreensão do mundo e do tempo presente». As razões invocadas mostram-se incapazes de realizar em permanência a mais pequena produção de ideias no seu contexto.
O Jazz escapou de vez à deliberação burocrática e unitária de uns tantos que, para fugirem às pressões do exterior, se autolegitimam e consideram as suas escolhas objectivas e justas. Onde estão representadas as tendências que actualmente evoluem em liberdade nos múltiplos lugares do mundo? Os “livre-acessos” recentemente criados pela utilização da Internet – mais um meio de propagação descentralizada de toda a comunicação no qual «o advento do instantâneo e ubíquo é, portanto, o advento da luz do tempo, desse tempo intensivo da electro-óptica que suplanta defenitivamente a óptica passiva tradicional» – alcançam uma «velocidade audiovisual [que] serve para ver, para ouvir, ou por outras palavras para avançar no tempo real, como a velocidade do automóvel dos veículos servia para avançar na extensão do espaço real de um território». A música estará, tendencialmente, sempre em confronto com o império multinacional anti-divulgador e centralizado que poderá apressar o fim deste ciclo mediaticamente controlado em que temos vindo a viver desde o incremento da sua indústria, nos princípios do séc. XX, conduzindo a uma nova era, a «indústria da simulação».

A multidão desatenta

Os que ocupam um lugar no território dos meios de comunicação e divulgação têm de considerar a pesada responsabilidade que inevitavelmente transportam: não basta fazer considerações pomposamente elaboradas sobre as suas legítimas opiniões, porque, entre outras coisas, está por preencher um espaço que, pela sua superfície e pelo limitado número de informações, cria a ilusão de que só existe um tipo objectivamente representativo. A evidente atitude protectora não credita uma postura ética irrepreensível, situada acima de qualquer suspeita, nem beneficia do prestígio que todo o esforço de informação e de trabalho de investigação deveria destacar. Não é suficiente reunir conhecimentos numa cronologia arrumada segundo datas e leis de um espaço histórico, acumulando crónicas e factos a mais. O saber sensível como uma complexa correlação, alargada às mais versáteis tipologias de estratégias de informação e de comunicação, aglutinadas sob a égide de um ambiente em permanente alteridade múltipla e geradora de intercâmbios, terá de ser uma das principais vias de acesso a uma nova ideia de Jazz. Trata-se do que nós podemos chamar de «revolução da informação», «um dos valores mais fortes da época contemporânea, que privilegia a liberdade, o indivíduo, o direito à expressão e o interesse pelas técnicas que simplificam a vida: todos estes elementos estão presentes na comunicação».

A incúria do erro

Há que ultrapassar a fase de abertura das fronteiras, que veio trazer novas modificações nos mecanismos de análise. Algumas perguntas surgem, inevitáveis: serão suficientes todos os esvaziamentos semânticos que lenta e vagarosamente vão acontecendo e que podem passar a configurar o nosso “parque natural jazzístico”? Qual o seu modelo formal e cultural de comunicação e quais os meios teóricos que se utilizam para o pensar? Não podemos negar a multiplicação das técnicas, nem o crescimento das indústrias culturais ou a ascensão dos grandes grupos económico/culturais, prova de uma instrumentalização e de uma alienação sobejamente reflectida sobre uma qualquer influência ideológica. «A era de tempo intensivo já não é a era de meio de transporte físico. É, contrariamente ao tempo extensivo de outrora, o domínio exclusivo de telecomunicações, por outras palavras, a era da imobilidade e da inércia domiciliária».
Conhecemos os princípios mercantilistas, sociais e políticos que orientam o produto cultural. O facto de uma grande quantidade de pessoas assimilarem, aparentemente, uma determinada técnica de comunicação não basta para que se transformem em “público”. Podemos considerar que as trocas passam a ser facilitadas no contexto de uma escala mais alargada, mas se tudo se verificar à custa de uma redução da complexidade da comunicação, «passamos de tempo extensivo da história ao tempo intensivo de uma instantaneidade sem história», possibilitada pela tecnologia do momento. Não há portanto uma relação entre a qualidade e o número de indivíduos que a ela acedem; o número de receptores não equivale ao estatuto de um verdadeiro público, aquele que se afirma como o autêntico possuidor de uma indiscutível massa crítica. Este estado a que se submete um pequeno círculo dos que se consideram mais capazes de se exprimirem não deixa de ser mais uma espécie de simulacro elitista. Continuaremos, apesar de tudo, a ser confrontados com facto eternamente paradoxal de que só um número restrito e limitado de assuntos serão tratados; as consequências, a médio e a longo prazo, poderão encontrar-se contidas numa célebre máxima – o que é importante é conhecido, logo mediatizado.

O grande público

Quando uma parte considerável de todo o processo de afirmação se baseia numa mera estatística de audiências, sucesso é confundido com talento e os interesses da sua viabilização económica sobrepõem-se a muitos dos valores artísticos adjacentes. Compreender tal realidade implica conceder a nossa atenção aos inúmeros tipos de pressões, tentativas de manipulação, simulações mais ou menos conseguidas, jogos de poder organizados pelos que o detêm e que envolvem todos os agentes que se situam no interior do “campo”. Aceita-se que seja importante e fundamental para a própria sobrevivência do Jazz que paralelamente se pretendam atingir outros desideratos nada relacionados com a actividade da criação artística. Infelizmente, o tempo de existência dos media (cinquenta anos para a televisão) não permite a conjugação de um espaço de distanciamento histórico suficiente para que possamos entender as consequências a longo prazo desta importante questão. Saber estar actualmente perante o Jazz é uma atitude, uma entre outras tantas formas inéditas de nos localizarmos perante os acontecimentos passados sobre os quais ainda não se reflectiu o suficiente. «Ontem, o modelo da “tradição” privilegiava a duração e a continuidade. Os indivíduos inscreviam-se numa “História” cujos códigos e usos respeitavam a sua trajectória que consistia em conjugar a singularidade do seu destino com a força das memórias. O indivíduo, como se costuma dizer, «reproduzia» mais do que inovava. Respeitava. O modelo cultural moderno actual é exactamente o inverso: é a liberdade do indivíduo que prima; o sujeito e não a tradição; o presente, e não o passado; a expressão, e não a regra; eu, e não os outros. A disciplina, o respeito pelo passado, as tradições, a obediência, são valores que parecem de um outro mundo». Subsiste um presente indefinido, sem regras nem interditos, logo, quase sem rupturas. Cada indivíduo, singular e livre, está um pouco perdido na busca da sua singularidade. O que explica esta imensa corte de «nómadas»: indivíduos reconhecidos no seu ser, sem adversário nem projecto. No passado, a continuidade e a tradição eram a regra e a sequência, a ruptura e o individualismo, excepção. Hoje «o direito à diferença é reconhecido»”.
Há os que optam por um mecanismo de afirmação e reconhecimento a longo prazo, de modo a permitir que permaneça, sobre os demais interesses, um vasto “capital simbólico” cuja constituição advém de se adoptar uma visão da “arte pela arte” ou “arte pura”, sem concessões. Esta é a via decorrente de uma lenta aquisição de reconhecimentos ao longo do tempo, implicando coerência de postura pelo distanciamento e independência em relação ao estatuto oficialmente reconhecido, hierarquizado, dominante e consagrado.
Outros há que, pelo contrário, apostam na exploração do curto prazo: vivem de encorajamentos fáceis, ou apoiados em enredos massificadores ou de uma radicalidade sem sentido, numa busca frenética do sucesso imediato; chega a aceitar-se como norma a prática inevitável das cedências impostas, tantas vezes de forma selvática e antropofágica, pelos vários mecanismos de pressão – comércio, indústria, público. Integram-se, para o efeito, numa imensa rede das dependências da qual desconhecem quer a dimensão quer a qualidade dos compromissos a cuja aceitação obriga.
Não pretendemos fixar a nossa atenção nestas duas formas de estar e actuar. Elas intercruzam-se entre si de tal forma que muitas das suas variáveis transformam cada elaboração em meios complexos e difíceis de se observarem. Deixou de haver compartimentos estanques e à prova de som. O mundo faz-se ouvir cada vez mais numa circularidade sonora em que a comunicação faz amplificar sucessivamente o número, quebrando-se assim as escalas do tempo e do espaço. Curiosamente, se para o efeito será válido e consensual olharmos a uniformidade causada por um padrão de cultura monolítico e global, não se entende por que razão se nega ostensivamente a riqueza das variedades de apropriações daí resultantes.

O que estamos a fazer

Por entre as contradições de uma sociedade individualista de massas na qual coabitam dois interesses estruturais que se constituem na realidade social e política em que vivemos, será de considerar que «a valorização do indivíduo em nome dos valores da filosofia liberal e da modernidade; a valorização do grande número em nome da luta política em favor da igualdade» estabelecem princípios importantes de orientação analítica a considerar. «A economia assegurou a passagem de um a outro, alargando sem cessar os mercados, até à instauração da sociedade de consumo de massas, onde encontramos as duas dimensões: a escolha individual e produção em grande número. Assim temos de saber gerir estas duas dimensões: o indivíduo e as massas através da criação de um novo equilíbrio sociocultural». Confrontados com esta nova situação, constatamos que «o paradoxo é, pois, que apesar do modelo cultural individualista e liberal, centrado na realização do eu, a diferença e a singularidade continuam a ser, na realidade, tão pouco admitidas hoje como ontem. Muito simplesmente porque essa ideologia da liberdade, da expressão e da busca de si próprio conduz a conformismos pelos menos tão pesados como os de ontem, uma vez que todos passaram a ter a sensação de serem livres».
Os sintomas desta debilitação ficam devidamente representados no “campo”, já que este não foi capaz e não soube reunir os mecanismos de defesa necessários para que exista uma real possibilidade de sobrevivência dessas imprescindíveis atitudes. Assiste-se a uma gesticulação informe e subserviente em relação à mediania de conhecimentos do chamado grande público, erigido em alvo preferencial, já que «o número democrático, durante muito tempo encarado como um ideal, pode ser tão tirânico como o foi a elite aristocrática». O público transforma-se então numa presa demasiado fácil; «o público não tem história», surge apenas como um pobre e mero destinatário permanentemente manipulado, sem espaço para iniciar, exercer ou melhorar o seu processo de autocrítica e, consequentemente, ampliar a sua capacidade cognitiva.


Segura o lugar

Actualmente, vivemos debaixo de uma intensa “profusão de informações: sabemos tudo acerca das estratégias, dos agentes, da constituição dos grupos multimedia, das novas técnicas de informação, do gosto dos públicos, do custo dos programas, sem que, por isso, a procura de análise se manifeste. Os media criaram uma rubrica especializada e o resultado é paradoxal. Em vez de se favorecer uma actuação mais abundante, mais rica de diversidade e de análises, constatamos o fenómeno contrário, como se as informações constituíssem análise. É isto a resistência à análise: a vontade de não ir para além da informação, dos boatos, das suposições, numerosos nesta área. Em suma, o “mercado” da informação é florescente, na condição de nos contentarmos com este sussurro de informações e de meios-segredos identificados com a análise. A comunicação é um sector no qual, apesar dos discursos oficiais, ninguém quer “saber”. Não podemos, pois, surpreender-nos por o núcleo de pessoas afectas à comunicação e divulgação do Jazz estar aqui contemplado.
O saber do Jazz não justifica todas as ignorâncias e mesmo que ocorra a apresentação em série de inúmeros conhecimentos nesta matéria específica, eles são sempre deficitários; manifestam-se através de uma actividade sem memória e efémera nos procedimentos, de tal modo que quando a distância temporal é suficiente para assegurar qualquer tipo de validação artística, nada resta. Neste sentido, é importante que se realize, no tempo e no espaço de cada agente, o mais completo aproveitamento do saber e do conhecimento que só pode ser adquirido através do acesso permanente a uma informação alargada às várias componentes que constantemente se relacionam entre si – a forma, a função, a história, a interpretação, a audição, a estética, a ética, a atenção, etc. A concretização destas tarefas requer uma absoluta neutralidade e total independência em relação a uma enorme estrutura de interesses, instalada também à volta do Jazz, da qual dependem todas as actividades de comunicação social e artística.

Por uma estética do arrependimento

Saber estar no meio dos vários agentes/actores sem recorrer à utilização abusiva dos inúmeros corantes e conservantes de visibilidade e retórica, facilitadores do avanço de uma nova falsa radicalidade, será talvez uma atitude diferenciadora (e até indispensável) no importante papel que, no contexto das artes em geral e do Jazz em particular, é assumido pelos que, compreendendo os fenómenos de subserviência e vulgarização, tomam o aparecimento de inúmeros confrontos, ditos polémicos, como nada mais do que manifestações de carácter eminentemente institucional. As atitudes mais ou menos conservadoras/radicais, dependentes, académicas, ortodoxas, ambiciosas, comerciais, de grupo, etc. que se movem em rota de colisão com outras de sinal contrário – as vanguardas, os modernistas, os heterodoxos, as minorias, os individualistas, os independentes, os iconoclastas, os malditos, os marginais, os revolucionários, etc. – foram dramas imprescindíveis no respirar permanente do “campo”. Nele não pode mais haver qualquer tipo de confusões ou cosméticas, porque o importante é tornar interessante a discussão sobre a grande questão da criatividade no momento em que vivemos. Estes jogos permitem, além do mais, que se criem variados mecanismos “a contrario”, sempre em aperfeiçoamento, relativamente à grande tendência assimiladora, integradora, uniformizante, homogénea, massificante que o reconhecimento e a consagração, com a consequente hierarquização de valores transnacionais e globais de que esta pretende ser portadora – «o sinal vídeo, a alta definição electro-óptica, os lugares das imagens em vez das imagens dos lugares, o walkman, o instantâneo, a difusão em directo, a definição temporal das processos da captação de imagem, como deslocar-se sem se mover, o veículo audiovisual, a simulação, a revolução do transporte imóvel»… Há que permitir o desenvolvimento de um “campo” que admita a actuação livre de todos os seus agentes, sejam a favor ou contra; que lhes assegure na sua vivência a possibilidade de alcançar, agir e influenciar todas as outras partes essenciais, internas e externas, ao “campo” existencial do Jazz. Só através desta forma de coexistência “tempestade/tensão” é possível contra-atacar no império das mudanças intensivas.
A homogeneidade, a uniformização numa “farda” oficial, a repetição dos critérios de abordagem jornalística/cultural crescentemente escolhidos pelas audiências e agentes numa (re)formulação cúmplice, monolítica e decepcionante são já um evidente sintoma de declínio e incompatibilidade com uma hiper-realidade que começa a despontar. É cada vez menos suportável e mais entediante ver representado um determinado Jazz, “aquele Jazz”…
A afirmação de que não «não há verdade científica”, tal como Einstein a proclamou, já no fim da vida, aparentemente esclarecendo um conflito de interpretação com Niels Bohr, consagra o princípio da incerteza, que hoje rege não apenas a nova física mas o conjunto das ciências, e do qual decorre a actual regressão da ética até ao infinito...
Se o Jazz, enquanto arte, usufrui de uma presença satisfatória, ocupando uma razoável superfície de exposição verificável em alguns meios de comunicação, como se explicam os silenciamentos das televisões e das rádios? Esta realidade, a que não se pode permanecer indiferente, revela, de determinado prisma, mais vantagens do que prejuízos: o canal temático é uma forma de aprisionamento, um congelamento tanto mais grave quando o Jazz é uma música dita improvisada, uma perversão do valor da música sobre o poder da imagem.

O erro púdico

«O tempo que passa da cronologia e da história vê-se substituído por um tempo que se expõe, que se expõe à velocidade absoluta da luz» – surgem assim enormes espaços brancos na divulgação e promoção das formas de Jazz e ao lermos as palavras usadas, constatamos que elas não contradizem a “inseparabilidade mediática” que afecta profundamente a construção da realidade presente.. É totalmente inadmissível que se mantenha um espectro selectivo sobre uma música que, de uma maneira bem mais prejudicial do que desagradável, se mantém na posse de alguns sentimentos originários de uma geografia ideológica já transfigurada. Ficamos cada vez mais empobrecidos e atolados na desconfiança tristemente gravosa pela qual o “campo” desta música se deixou manipular. Mas se o movimento de negação sobre o instituído, o oficial, o consagrado e o reconhecido pode parecer tão estranho, a sua inexistência é, pelo contrário, a negação dos próprios avanços no “campo” artístico até aqui realizados, porque foi sempre foram através de rupturas, de lutas, de confrontos, de jogos, etc. que se realizaram todos os desvios.
No caso português, somos confrontados com uma situação excessivamente desproporcionada e deficitária, e como tal dificilmente justificável, quando analisado da óptica das grandes mudanças da realidade e da oposição dos contrários: quando o nosso “campo” ainda nem sequer adquiriu um estatuto minimamente internacional, nem se consolidou numa formula mais equitativa nas suas representações, as tendências mais experimentalistas surgem-nos em regime de semi-clandestinidade, qual a pequena vida comunitária na «Monk´s House, a casa de Virginia Woolf, [que] era para ela o navio, o veículo de uma navegação imóvel» ou o projecto BIOSPHÈRE II, «um microcosmos habitado por 8 pessoas, homens e mulheres, encerrados por um período de dois anos, em condições de confinamento estanque simulando, salvo a imponderabilidade, as de uma colónia instalada num planeta desprovido de atmosfera, ou ainda as que existiriam na terra depois de uma catástrofe nuclear...»; o "campo" nacional vive, portanto, como náufrago voluntário, nas franjas e nas margens do “Jazz ambiente natural”. A restrição das actividades através da falta de acesso aos meios de comunicação completa um círculo espacial onde as pequenas publicações (fanzines) existentes vagueiam pelos interstícios de liberdade.
Quando as grandes superfícies comunicacionais, uma espécie de “shoppings” de informação, são capazes de se fazerem ouvir num regime mínimo de diversidade, tudo o que fica à sua volta perde sentido e está desde logo irremediavelmente afastado da “ghettização” mediática, do apartheid electrónico, da xenofobia televisiva e do soporífero em tempo real. Se nem sequer podemos defender os nossos pontos de vista, uma vez que não se quer nem se permite utilizar uma alteridade de linguagem, que não colhe, compreensivelmente, a simpatia do sistema construído numa óptica de culto pela “adoração dos grandes nomes”, teremos de considerar que o Jazz em Portugal não passou o limiar mínimo da divulgação normativa e da promoção dependente mas reflecte um generalismo incompleto e expurgado. Aborda as grandes questões pelo fenómeno temporal e prefere fixar-se numa cronometria indolente, superficial, aborrecida e sonolenta, ultrapassada pelas velhas fórmulas desgastadas pelo fracasso da referência idealista. Apresenta uma riqueza conjuntural indefesa, debilitada, diminuída e enjaulada pelas suas próprias circunstâncias, fechada em dimensões de quarteirão, em circuito fechado, em condomínio restrito, em acessos não estruturados, incoerentes, próxima do regime de alienação oficializado pelo controlo da ocupação dos tempos livres. A intenção activamente recreativa das ofertas deixa prever o pior.
Não nos parece aceitável que se estabeleçam constrangimentos aos graus de abordagem demasiadamente extremos aplicados a certos acontecimentos que são, quase em exclusivo, o assunto do dia, enquanto se admite abertamente todo o tipo de subjectivismo complacente. Uma das mais importante questões que se coloca ao Jazz é a de que tudo faz parecer que não se acredita nele: falta a percepção e o sereno reconhecimento de estarmos perante uma música, uma maioridade estética, séria e emancipada que, como tal, tem de ser objecto de uma conceptualização no espaço, no tempo, na velocidade, na simulação, na tecnologia... e neste sentido o seu programa exploratório não tem limites.

Nota-se na sombra cinzenta o espectro das dúvidas e das suas respectivas interrogações, a inépcia dos fins e das estratégias que essas posições retroactivas escondem, os acontecimentos que pecam pela sua falta de profundidade, sujeitando-se a uma ordem eivada de maior ou menor secretismo superficial e saudosista. Depois de tantos anos de Jazz em Portugal, o que de facto subsiste é muito pouco para quem desejou assumir a sua representação e tentou influenciar os modelos utilizados na sua divulgação. Urge cuidar do aparecimento de novas ideias. A época do “lugar” chegou ao limiar mínimo da sua justificação.

Periferias e baixios

Enquanto se ensaiam vãs tentativas de agir sobre um só modelo, no qual se deseja glorificar a derradeira instância classificadora, consagrando, reconhecendo e hierarquizando, fica esculpida a verdadeira “ars” fomentadora do regime. Desconhecimentos silenciosos, ubíquos e distraídos e uma apatia activista fornecem à sua audiência fantasmagórica os julgamentos dos actos definitivos, que as inflamam numa reactiva manifestação “nonsense”. Um narcisista sem auto-estima, um minotauro sem labirinto, um cupido sem arco, para vários tipos de salvação “post-mortem”. Aliás, assistimos permanentemente a repetidos e imitados mecanismos de comportamento que nos avisam sobre as deficiências do sistema de abordagem em vigor e do seu grau de enfermidade (e não só em relação à música de Jazz!), quando se têm em atenção os resultados extremamente homogéneos (clonagem de opinião), iguais em igualdade, similares na figuração, idênticos no arranjo e repetidos em geral. Somos, deste modo, obrigatoriamente induzidos em erro sempre que tentamos empreender qualquer tentativa de estabelecer uma análise que se pretenda mais correcta e aproximada do actual panorama do Jazz em Portugal e das possíveis formas de pensar este tema no nosso país. As brancas são evidentes e visíveis: não se publicam estudos (salvo as excepções dos trabalhos de Jorge Lima Barreto e a publicação de José Duarte), nem reflexões, nem monografias, nem análises; não se efectuam investigações no terreno nem se produzem ensaios aprofundados sobre o Jazz em geral e, muito principalmente, sobre o Jazz contemporâneo; não se trabalha sobre a relação das estéticas dentro e fora do Jazz, nem sequer entre aquelas que se cruzam directamente com ele numa perspectiva sociológica, comunicacional, estética e em muitas outras interacções possíveis; não se fazem sondagens de opinião nem de mercado, de modo a perceber as reacções dessa parte tão importante do nosso “campo” de actuação; não se cuida minimamente da história do Jazz em Portugal nem se estabelecem contactos e diálogos com os músicos portugueses – as suas obras são olhadas com desconfiança, não são comentadas, nem se ouvem os seus autores no sentido de se buscarem as ideias e motivações interiores que lhes deram origem. O Jazz em Portugal continua por descobrir numa parte considerável da sua história passada e presente, desconhece-se a riqueza e a variedade dos espólios pessoais existentes e marginaliza-se a importância de todo o tipo de coleccionismo.
No entanto, o assunto “jazzístico” do dia mantém-se em permanente e frenética ebulição, totalmente fixado em dois pólos/temas preferidos: por um lado, permanece-se no afã de realizar, com um dispêndio excessivo e supérfluo de energias, os chamados “acontecimentos monumentos” na “sociedade do espectáculo”; por outro lado, tudo se subordina à óptica do CD. As gravações (mal)tratadas são aquelas que o mercado nacional importa (o que não deixa de ser paradoxal) e que passam a beneficiar de importantes extensões de espaço e palavras – registe-se a frequência com que acontecem esses rituais de exorcismo histórico que ocupam uma parte considerável da superfície informativa. O culto das visões oníricas cujo objecto são as contínuas publicações/reedições discográficas, com anos e anos em cima, deixa ressaltar desses acontecimentos auditivos um “síndrome” de tendência arqueológica e exalam um estranho odor de cadáver exumado, num processo saudosista e retroactivo perfeitamente fora de moda. Uma parte importante desta mecânica disponível diz respeito às rigorosas e implacáveis avaliações, medições, comparações, pesagens e cálculos dos CD’s (com mais ou menos estrelas ou numerações).
As definitivas e absolutas classificações anuais sobre os melhores concertos, discos, etc. são os momentos mais altos, nos quais o monopólio de opinião se oficializa para a eternidade, no culminar da sua versão mais desusada e destituída de sentido. Acresce ainda o facto de estas tão aturadas funções serem elaboradas segundo um método de trabalho em que ressalta a necessidade de mascarar as necessidades de conhecimento pela super-abundância de informação. A desmesura está em toda a parte, proclamando: «Circulem, não há nada para pensar!».

Pontos finais

Pelo desinteresse da vontade, pela falta de crença, o impulso de ir sempre mais além, atrás do horizonte que se desconhece e que se tem o dever de explorar fica adiado sine die.
Aquilo que já é sobejamente conhecido através das inúmeras publicações especializadas que, felizmente, chegam todos os meses às bancas do nosso país, a facilidade de acesso rápido com que actualmente qualquer cidadão interessado tem ao alcance os inúmeros livros, monografias publicadas e discos editados (por pequenas marcas "de vão de escada"), ajudam nas tarefas de exploração; os discos de todas as marcas e também os independentes são hoje praticamente acessíveis via “Net” a todos os interessados. Este novo território de comunicação irá ser nos próximos anos o palco das mudanças mais radicais. Por uma dimensão de carácter individualista que urge preservar devemos confrontar «a valorização do indivíduo em nome dos valores da filosofia liberal e da modernidade; a valorização do grande número, em nome da luta política em favor da igualdade». Somos obrigados a considerar e a saber gerir estas duas realidades e quando analisarmos o que se vai passando à nossa volta teremos de admitir que o que nos acontece é apenas uma transitória e derradeira tentativa de afirmação de um “poder” que dia a dia se vê confrontado com uma dispersão de novas propostas e projectos perfeitamente incontroláveis. O aparecimento de miríades de galáxias músicas que não se sabe onde arrumar (on jazz ou off jazz) são as manifestações que melhor contrariam a lógica das ideias feitas. Transformam-se e multiplicam-se nos inúmeros alvos cada vez mais visíveis e interessantes, tornando praticamente inviáveis todas as práticas correctoras. Para já, e temporariamente, vão ficando depositadas na hhvala comum das omissões e dos esquecimentos, isto é, nas já conhecidas “margens do Jazz”. Remete-se para os fundos das gavetas o saudável choque entre temas, análises, intervenções, reflexões e opiniões que são bem mais formativas e aliciantes. Alguém dizia que as opiniões são feitas de lugares-comuns e a sua esperança de vida é extremamente reduzida. A verdadeira convivência obriga cada um de nós a reconhecer e a respeitar a existência do outro.

[topo]