Análise de Blue

By lulusenra

Derek Jarman foi um artista, pintor, realizador e ativista da causa gay. Nasceu em 1942 na Inglaterra e morreu aos 52 anos, devido a complicações causadas pela AIDS.
Formado em Belas Artes, Jarman iniciou sua carreia como cenógrafo e figurinista para ballet e Ópera. Mas não deixou de lado sua veia artística, continou exibindo suas pinturas em galerias de Londres enquanto fazia seus próprios filmes. A filmagem que fez sobre o pintor Caravaggio, em 1986, foi um de seus filmes mais populares. O compositor e designer de sons Simon Fisher Turner agregou poderoso valor e densas camadas sonoras a vários de seus filmes, entre eles: Caravaggio, The Gardian, Edward II e Blue.
Jarman defendia um cinema pessoal mais focado em imagens marcantes e sons evocativos do que um filme narrativo convencional. A temática de seus filmes gira em torno de duas questões principais. Muitos ilustram esforços imaginativos para reconstruir a natureza do amor de homessexuais nos tempos passados, onde essas paixões não podiam ser expressadas livremente. O filme The Garden relaciona a perseguição dos homessexuais com a crucificação de cristo e Edward II, com um rei britânico que parece ter tido um caso com seu principal assessor. Outros ilustram sua incessante batalha contra a AIDS. É o caso de Blue.
Em 1986 Jarman descobriu que era portador do vírus HIV. Em 1993, no estado terminal da doença, já quase cego e muito debilitado, realizou o filme Blue. O filme desenvolve a temática da própria morte do artista e relaciona a epidemia da AIDS com outras tragédias e fatos que ocorrem no final do século XX.
A idéia inicial de Derek era fazer um filme dedicado a um artista que adimirava muito: Yves Klein. O filme consistiria em uma projeção de tela azul. No entanto, a idéia foi deixada de lado pois não conseguiu levantar fundos para a execução do projeto. Com a rejeição, Jarman adaptou a idéia e concebeu um filme sobre ele mesmo e suas questões mundanas, existenciais, poéticas e de acordo com sua visão de paciente cego e terminal de AIDS. Blue foi um dos muitos filmes lançados na década de 90 a abordar a questão da AIDS/HIV, que estava no auge da sua visibilidade pública. O filme relata os sentimentos de Jarman em relação ao mundo à sua volta e seus problemas, a situação das pessoas com AIDS e principalmente suas impressões sobre sua vida e sua cegueira. Em Blue ele relaciona seu destino, sua vida pessoal com os eventos/fatos históricos do mundo público.
O filme teve o financiamento da Arts Council, Channel Four e BBC Radio 3. Foi simultaneamente transmitido na televisão e no rádio. Os ouvintes que não tivessem acesso à televisão foram aconselhados a olhar para um postal azul durante a audição do filme.
As 252 primeiras ligações para a Channel Four depois da transmissão do filme foram de indignação e desapontamento com o filme, dentre as quais 4 telespectadores declararam preferência pelo vermelho e alguns acharam que havia ocorrido um erro na transmissão da emissora. Mas os críticos foram positivos e concordaram que o filme tem questões interessantes para se discutir e é uma experiência visual profundamente prazerosa e contagiosa.
A falta de cenas e imagens em movimento que ilustrem o que está sendo narrado nos permite imaginar e projetar imagens em nossas mentes do que se passa no filme. De maneira quase que hipnotizante, o azul nos leva a prestar mais atenção em pequenos detalhes sonoros, os quais passam desapercebidos quando assistimos imagens em um filme convencional, tais como o tom de voz dos atores, a trilha sonora, os sons em geral. Assim vemos, ou melhor, ouvimos o filme por outro ângulo. Em filmes convencionais somos atraídos e hipnotizados pelas imagens dos atores, legendas, e deixamos de lado os sons.
O cinema é uma sinestesia, ou seja, uma mistura dos sentidos da visão e audição, é uma experiência audiovisual e, dessa maneira, não podemos dizer que “assistimos” a Blue. O que Derek fez nesse filme pode ser considerada uma crítica a essa forma de pensamento, fazendo quase que o contrário, se utilizando de apenas sons e música para que os espectadores criem as imagens em suas mentes.
A trilha sonora é marcada por músicas que, juntamente com a expressão verbal e sentimental das narrações, concebem uma experiência de transmissão e expressão de sentimentos única. Ela foi especialmente composta para ressaltar as emoções e sentimentos demonstrados ao longo do filme. Muitas vezes as trilhas são complementos sonoros para os filmes. No entanto, em Blue, podemos dizer que a trilha sonora é essencial para a compreensão e desenvolvimento do filme. Jarman manipula a trilha sonora, às vezes usando efeitos sonoros para reforçar a narração off, outras vezes substituindo-a totalmente.
A trilha, assinada por Simon Fisher Turner, é envolvente e capaz de, em alguns casos, conseguir, por si só, exprimir um sentimento, uma sensação, uma idéia, que palavra alguma poderia transmitir. Há momentos em que sons ambiente e músicas são utilizados para enfatizar alguma idéia ou passagem do filme, mas há vezes em que o narrador descreve uma idéia que depois só é compreendida quando ouvimos o som a que ele estava se referindo.
Há uma forte relação entre as narrações, a tela azul e os outros sons da trilha sonora. Muitas das músicas e dos sons que constam nesse filme são empáticos, ou seja, possuem relação direta com o que está sendo visto. Como Blue não possui imagens, acaba acontecendo de ter sons empáticos e anempáticos, ou seja, ouvimos alguns sons que estão diretamente relacionados com o que conseguimos captar pela narração e, em outros casos, ouvimos, vemos ou captamos certas sensações que funcionam para além do que está sendo dito, narrado e descrito.
Logo no início do filme, quando uma voz começa a narração do filme, percebemos um som ascendente, deixando a voz off em uma posição convencional e de suporte. Depois, na próxima sequência, o som ambiente provoca um efeito documental, pois ouvimos o bater de xícaras e copos e somos capazes, a partir daí, de imaginar a situação. Essas alternâncias sonoras entre sons de espaços imaginários/sentimentais e documentais/factuais, juntamente com sons subjetivos, instrumentais, musicais e coros, são marcantes ao longo de todo o filme.
O verbal (a narração) e o sonoro (os sons ambientes, as músicas) estão sempre conectados, não necessariamente na dependência um do outro, mas na complementariedade para um entendimento profundo e sentimental do filme como um todo.
Nessa mesma “cena” inicial, quando é descrito um exame de vista, o azul pode ser interpretado como sendo imutável, um tipo de cegueira, que limita Jarman. No final, no entanto, é o mar infinito, é a metáfora para a liberdade, para o escape de todos os problemas que afligem Derek.
As pinturas monocromáticas de Yves Klein, nas quais Jarman se inspirou, são tentativas de expressar e evocar um sentimento sublime. Blue é a cor do céu e, portanto, é fácil associar e entender o significado espiritual, transcendental e infinito que ela assume, apesar de não haver verdades essenciais sobre a percepção e significado das cores.
Cada espectador tem uma experiência única ao ver Blue, permitindo à tela ficar cheia (metaforicamente) de desejos, projeções e associações de cada um sobre o que foi transmitido no filme.
Jarman faz uma crtítica ao pandemônio imagético do pós-modernismo, criado pelo capitalismo: “From the bottom of your heart, pray to be released from image”. É nesse tipo de arquétipo que as mais poderosas e diferentes formas de imaginação e expressão artística são desprendidas da dependência da imagem.
Concluindo, o filme torna-se um pouco denso, difícil de ser digerido, devido ao seu carregamento sonoro e ausência de ações visuais. Mas, no entanto, ele consegue prender o espectador através da trilha sonora, que foi muito bem trabalhada por Jarman e Fisher para que os espectadores se envolvessem ao máximo com as questões propostas e levantadas pelo filme.

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